Um olhar para Lc 12,13-21: Cuidado com a ganância!

Introdução

Quase sempre, na liturgia, são feitos grandes saltos na sequência dos textos que são lidos. É o caso deste domingo. Houve um salto de Lc 11,14 para Lc 12,13-21, deixando de fora: os contrastes em relação aos judeus (Lc 11,14-54) e o início do encorajamento que Jesus fez aos seus discípulos para que não se omitissem diante da verdade (Lc 12,1-12). Esta narrativa informa que uma enorme multidão estava seguindo Jesus e se “pisoteava” (Lc 12,1). Para Jesus, a coragem do testemunho, que pode comprometer a vida, é, na verdade, motivo de alegria. Um contexto propício para “alguém” querer envolver Jesus em uma disputa familiar, que acabou por resultar em um grande ensinamento e exemplo de “escatologia particular”, no qual Jesus fez Deus falar e emitir uma sentença.

 

  1. Texto bíblico

13 Alguém, pois, da multidão, disse a ele: “Mestre, dize a meu irmão para dividir comigo a herança”.

14 Mas ele lhe respondeu: “Homem, quem me pôs como juiz ou mediador sobre vós?”

15 Disse, porém, a eles: “Atenção! Guardai-vos de toda forma de cobiça, porque, ainda que alguém tenha em abundância, a sua vida não consiste em seus bens”.

16 Contou-lhes, então, uma parábola, dizendo: “A terra de certo homem rico produziu enorme safra.

17 E pensava consigo mesmo, dizendo: ‘O que farei? Não tenho, pois, onde armazenar meus frutos!’

18 Então disse: ‘Isto farei: derrubarei meus celeiros e construirei maiores, e ajuntarei ali todo o trigo e meus bens.

19 E direi à minha alma: Alma, tens muitos bens armazenados para muitos anos; descansa, come, bebe e alegra-te.’

20 Deus, porém, lhe disse: ‘Insensato, nesta noite te pedirão a tua alma; e o que preparaste, para quem será?’

21 Assim é com quem entesoura para si mesmo, mas não se enriquece diante de Deus”.

 

  1. Que diz o texto?

Vejamos as cenas do episódio.

1ª) Alguém da multidão interpela Jesus com uma questão familiar, cujo conteúdo é a repartição da herança, o que faz pensar na morte do pai e líder da família (v. 13).

2ª) Jesus dá uma resposta curta e direta, pois para a questão já existiam juízes (v. 14). Note-se que o interlocutor de Jesus é um “anônimo”, permitindo que o leitor se coloque em seu lugar na narrativa.

3ª) Jesus aproveita a situação e dirige à multidão uma exortação em forte tom de alerta (v. 15).

4ª) Amplia a exortação com uma parábola que possui três momentos:

  1. a) A prosperidade inesperada de um homem rico (vv. 16-17);
  2. b) A sua solução egoísta (vv. 18-19);
  3. c) O juízo de Deus (v. 20).

A fala de Jesus é concluída com uma máxima sobre a verdadeira riqueza (v. 21).

Esse “alguém” que interpela Jesus, provavelmente, não era o filho primogênito. De acordo com Dt 21,17, na repartição da herança, o filho primogênito tinha direito a uma dupla porção. Por exemplo: se fossem dois irmãos, a herança era dividida em três partes, e ao mais velho cabiam 2/3 da herança; se fossem três irmãos, a herança era dividida em quatro partes, e ao mais velho cabiam 2/4 da herança; se fossem cinco irmãos, a herança era dividida em cinco partes, e ao mais velho cabiam 2/5 da herança e assim por diante.

Pode-se pensar que o irmão mais velho, que se tornara o líder da família e o guardião de todos os bens, não havia dado ainda a parte que cabia ao reclamante ou, pior: a estava negando ao seu irmão. Típico exemplo de ganância. Por um lado, a questão proposta parece justa, mas, por outro lado, Jesus não veio para ser juiz de causas humanas, mas da causa de Deus com a humanidade: a salvação, pela qual esta seria redimida e justificada de uma dívida por ela impagável: o pecado e a sua consequência, a morte.

O tal “alguém” apelou para Jesus como recurso, pois, pela forma como falou, pode-se conjecturar que o seu irmão talvez estivesse no meio das pessoas que estavam seguindo Jesus (seria até conhecido dele?). Não causa espanto a resposta curta e sincera de Jesus. Subjaz ao “quem” da sua resposta uma autoridade que, sobre Jesus, só poderia ser Deus, o seu Pai. Jesus assim se posiciona, pois deve seguir a vontade de Deus e realizá-la.

Contudo, chama a atenção o fato de Jesus emitir um contundente alerta sobre a “cobiça”, a “abundância” e o uso dos “bens”. Pode-se ver, nessa fala, o meio equivocado de se obter os bens: “a cobiça”; o seu acúmulo e, o pior, fazer a vida depender da riqueza alcançada, ainda que de forma lícita. Subjaz a isso o egoísmo que pode levar ao egocentrismo e ao individualismo. Ervas daninhas que descaracterizam o ser humano, o aprisionam nessa existência e o cegam ao socorro do próximo. Se pensarmos no episódio do bom samaritano (XV Domingo do Tempo Comum), podemos encontrar mais um exemplo de como não se comportar em relação a Deus e ao próximo.

Jesus, como bom mestre, aproveita a ocasião e a situação, que nela se apresentou, para prosseguir com a lição capaz de mudar o modo de pensar e de agir das pessoas que o estavam seguindo, em particular dos seus discípulos. “A terra de certo homem” é um dos mais preciosos bens de um semita. Não é uma terra qualquer, é boa, pois produziu “enorme safra”. Nada se diz da semente usada e tampouco de como foi duro trabalhar essa terra para que assim produzisse, mas são elementos que devem ser considerados.

Diante da enorme safra, de grandes lucros ou de muito saber, a pessoa precisa refletir e decidir o que irá fazer: “E pensava consigo mesmo, dizendo: ‘O que farei?’”. A opção desse “certo homem” foi a de analisar a sua situação diante de tamanha realização. A opção que tomou faz lembrar a narrativa do livro do Êxodo, na qual o faraó usou mão de obra escrava para construir as cidades-armazéns de Pitom e Ramsés (Ex 1,8-14). A ação não visou apenas o lucro, mas um deleite individualista e descomprometido com os mais necessitados. É a postura egoísta de quem olha somente para o bem de si mesmo: “descansa, come, bebe e alegra-te”. Nota-se que o próximo não faz parte desse deleite. A caridade inexiste para esse “certo homem”. E em nós?

No Antigo Testamento, existem textos que denunciam a insanidade de quem pensa que pode apoiar a própria vida nos bens que possui:

Sl 49,6-11.13: “Por que temer nos dias tristes, quando me circunda a malícia dos perversos? Estes confiam na sua força, se vangloriam da sua grande riqueza. Ninguém pode resgatar a si mesmo, ou dar a Deus o seu preço. Por quanto se pague o resgate da vida, jamais poderá bastar, para viver sem fim e não ver a tumba. Verá morrer os sábios; o estúpido e o insensato juntos morrerão e deixarão para os outros as suas riquezas… O homem na prosperidade não compreende, é como os animais que perecem.”

Pr 11,28: “Quem confia na própria riqueza cairá; mas os justos, ao contrário, verdejarão como as folhas.”

Pr 18,11: “Os bens do rico são a sua rocha forte, como uma muralha ao seu modo de pensar.”

Pr 23,4-5: “Não se fadigar por riquezas, renuncia a um semelhante pensamento; apenas pousas nelas o olhar e já não existem mais, pois assume asas de águia e voa aos céus.”

Ecl 5,10-12: “Quando aumenta o bem, crescem os que o devoram. Que vantagem há para seus donos? Se vê, só podem ver com os olhos. Doce é o sono do que cultiva, se come pouco ou muito, mas a fartura do rico não o deixa dormir. Existe uma grave enfermidade que vi sob o sol: riqueza guardada por seu dono para sua desgraça.”

Jó 31,24-28 afirma que não colocou sua confiança e esperança no ouro. Ele viu que essa atitude é uma iniquidade a ser julgada, pois significaria negar Deus, que está acima de todos os bens que se pode adquirir na face da terra. A idolatria da riqueza é uma afronta a Deus, origem e fonte de todos os bens para o ser humano.

Sf 1,18 afirma: “Nem sua prata nem seu ouro poderão salvá-los \[os ricos] no dia da ira do Senhor”.

Com base nesses textos, pode-se perceber que a parábola, contada por Jesus, tinha base nas Escrituras. Ao invés de intervir em uma questão transitória, Jesus preferiu propor um ensinamento que fosse capaz de ilustrar um valor permanente para as ações. Jesus fez Deus falar e sentenciar aquele “certo homem”, pois o que este previu que tinha para muitos anos de nada lhe serviria; a sua hora chegaria naquela mesma noite. Quem de nós sabe o dia ou a hora em que seremos chamados à presença de Deus? Estamos preparados?

Percebe-se, claramente, o eco dos textos acima citados na fala de Jesus. Os bens alcançados nesta vida de nada servem se não se tornam ocasião de caridade, pois esta é que, de fato, enriquece o ser humano diante de Deus, pois o torna semelhante a Ele. Subjaz a essa fala de Jesus a certeza de que ele sabia que era a maior riqueza de Deus entregue para o bem e a salvação da humanidade. Jesus, o Verbo Encarnado, soube “gastar” toda a sua divina riqueza, isto é, a sua vida encarnada, para devolver o ser humano redimido a Deus Pai (Fl 2,5-11).

 

  1. Que propostas o texto faz?

A principal proposta é não permitir que sejamos dominados pela ganância e acúmulo dos bens e riquezas, fechando-nos para a caridade que urge diante de quem está passando por sérias necessidades.

Quem sabe se o irmão mais velho, ouvindo o ensinamento de Jesus, não teria repensado o seu modo de agir, repartindo a herança com seu irmão? Não temos como saber! Ao lado disso, quem sabe se o reclamante irmão, ao ouvir a resposta direta, a exortação em forma de alerta e a parábola contada por Jesus, não aprendeu a lição sobre o que de fato conta nesta vida? Também não temos como saber! Contudo, não só podemos, como devemos pensar em como estamos administrando o maior bem que Deus nos concedeu: o dom da vida! Como estamos nos preparando para prestar contas a Deus por todo o bem que nos fez em seu Filho Jesus?

 

  1. Que o texto faz dizer a Deus em oração?

Pai Celestial, voltamo-nos a ti com o coração humilde, inspirados pelo ensinamento de Jesus Cristo, que nos advertiu sobre o perigo da ganância, lembrando-nos de que a vida não consiste na posse e abundância de bens. Reconhecemos que somos tentados a buscar segurança nas riquezas terrenas, a acumular para nós mesmos, esquecendo-nos de que nossa vida está em tuas mãos.

Perdoa-nos, ó Pai, pelas vezes em que nosso coração se apegou mais aos bens da terra do que aos tesouros do céu, em particular a ti. Ajuda-nos a compreender que é loucura construir enormes patrimônios sem considerar a brevidade da vida e a verdadeira riqueza: ser rico diante de ti. Que possamos aprender a moral da parábola narrada por Jesus: buscar segurança nos bens materiais é uma ilusão, pois a nossa finitude pode nos surpreender e chegar a qualquer momento.

Concede-nos a graça de não nos preocuparmos excessivamente com o que comeremos ou com o que vestiremos, mas em buscar o teu Reino em primeiro lugar, confiando que conheces as nossas necessidades e que és previdente e providente. Que possamos, em vez de acumular, vender e dar de nossas posses em caridade que socorra nossos irmãos necessitados e nos faça enriquecer diante de ti, um tesouro que a traça não come, a ferrugem não corrói e o ladrão não leva.

Que o Espírito Santo nos ilumine para que nosso coração esteja onde está o nosso verdadeiro tesouro: em ti, Deus, nosso Pai. Que possamos viver com liberdade evangélica, responsabilidade e em generosa solidariedade fraterna, imitando a Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por nós e para a nossa salvação. Por nosso Senhor Jesus Cristo, teu Filho, que contigo vive e reina, na unidade do Espírito Santo, por todos os séculos dos séculos. Amém.

 

  1. Que decisões o texto leva a tomar?

Dizer não a todas as formas de ganância, não entesourando para si mesmo. Buscar, em primeiro lugar, o Reino de Deus e sua justiça, certos de que o mais, isto é, o que nos é necessário à vida, virá por acréscimo. Ser solidário com os mais necessitados, abrindo mão de ganhos para socorrê-los pela caridade fraterna. Investir tempo e recursos no conhecimento da Palavra de Deus, a fim de que o testemunho se revele eficaz no mundo.

 

  1. Relação entre Lc 12,13-21 e Ecl 1,2; 2,21-23; Sl 89(90); Cl 3,1-5.9-11

A lição sapiencial de Coélet, vv. 21-23, prova a tese posta no v. 2, e está na base do ensinamento de Jesus. O esforço, a fadiga e as decisões, com os resultados obtidos, de nada valem se não enriquecem diante de Deus. A vida é um dom, mas é breve. Os anos passam velozmente. O orante do Salmo tem consciência disso. É sábio quem sabe contar os próprios dias e, pelo ensinamento de Jesus, reconhecer que não apenas o trabalho deve ser fecundo e produtivo, mas a vida como um todo, dando a Deus o devido louvor por todos os seus benefícios.

O céu se ganha com a vida na terra, mas, para o apóstolo Paulo, é preciso viver com Cristo para morrer com Cristo, a fim de ressuscitar com Cristo. O “homem velho”, que só sabe acumular bens, cede ao “homem novo”, nascido pela fé no batismo, tornando-se capaz de acumular tesouros nos céus, abandonando toda a impiedade e todo tipo de pecado pautado no egoísmo, no egocentrismo e no individualismo. Por Cristo, com Cristo e em Cristo, o cristão renasce como ser livre, supera as formas de discriminação e se empenha em estabelecer o Reino de Deus.

 

Considerações finais

A ganância, denunciada por Jesus, transforma bens legítimos em prisões interiores que cegam o ser humano para o valor da vida e da doação ao próximo pela caridade. Como Coélet proclama o vazio das fadigas humanas, e o salmista reconhece a brevidade da existência, somos chamados a “contar nossos dias” com sabedoria, optando por viver com sentido, generosidade e liberdade. A vida com Jesus Cristo, como ensina Paulo, nos liberta da idolatria dos bens e nos capacita a renascer em um estilo de vida novo, marcado pela solidariedade e esperança. O que realmente permanece é o amor traduzido em gestos concretos, pois só isso enriquece diante de Deus.

Aproveito para fazer uma associação. No lugar de terra fértil, pode-se pensar em imóveis alugados, em valores aplicados em investimentos que ocasionam bons rendimentos, mas também no conhecimento que se alcança através dos estudos, pelo qual muitos bens são obtidos. É triste quando alguém que “sabe muito” decide guardar para si e não partilhar esse saber. São riquezas desperdiçadas! Quantas paróquias estão ricas, enquanto outras fadigam. Quantas congregações religiosas e institutos enriqueceram e se fecharam à caridade. É triste constatar que muitas vivem e se mantêm do carisma, mas se desviaram do carisma na ação socioeclesial. Que dor é ver “a morte chegar” e as casas sendo fechadas, sem vocações e sem continuidade do carisma.

 

Padre Leonardo Agostini Fernandes

Capelão da Igreja do Divino Espírito Santo do Estácio de Sá-RJ

Docente de Sagrada Escritura do Departamento de Teologia da PUC-Rio

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