Introdução
O caminho de Jesus rumo a Jerusalém, narrado por Lucas, não é apenas geográfico; é profundamente espiritual e existencial. À medida que o Mestre se aproxima do destino, onde consumará a sua entrega total, ele lança um convite radical aos que desejam segui-lo: o discipulado exige renúncia, discernimento e uma entrega que ultrapassa vínculos familiares, ambições pessoais e qualquer pretensão de glória terrena.
A presente reflexão nos convida a avaliar e a confrontar os verdadeiros custos de seguir Jesus. Com sua fala intensa e provocadora, Jesus não suaviza as exigências ao seu seguimento. Ao contrário, revela que o caminho do Reino passa pela renúncia, pela cruz e pela sabedoria de quem calcula bem os passos que precisa dar antes de se comprometer com uma missão que transforma a própria vida e a dos demais.
- Texto bíblico
25E muitos se reuniam a ele, e, voltando, disse-lhes: “26Se alguém vem a mim e não odeia o seu pai, nem a mãe, nem a mulher, nem os filhos, nem os irmãos e as irmãs, e até a própria vida, não pode ser meu discípulo. 27Quem não carrega a própria cruz e vem atrás de mim, não pode ser meu discípulo. 28Pois quem dentre vós, desejando edificar uma torre, não se assenta primeiro e calcula o custo, se tem como terminar? 29Para que nunca, tendo sido posto o fundamento e não tendo força para concluir, todos os que observam comecem a admirá-lo, 30dizendo: ‘Esse homem começou a edificar e não teve como concluir’. 31Ou quem, indo a outro rei para fazer guerra, não se assenta primeiro e antes consulta se é possível enfrentar, com dez mil, aquele que vem com vinte mil contra ele? 32E, se não, ainda estando longe dele, envia uma missão e pergunta acerca da paz. 33Assim, portanto, todo aquele dentre vós que não renunciar a tudo o que possui, não pode ser meu discípulo”.
- Que diz o texto?
Desde Lc 9,51, Jesus está, com seus discípulos, a caminho de Jerusalém, onde viverá o mistério da sua paixão, morte e ressurreição. Pelo que diz o evangelista, ao longo desse caminho, muitos se associaram ao grupo de Jesus, talvez cogitando que, em Jerusalém, seria aclamado rei pelas autoridades e teria início a insurreição contra a dominação romana. A entrada triunfal de Jesus em Jerusalém atesta essa motivação (Lc 19,29-40) e pode ser considerada uma das razões que motivou Judas a entregar Jesus às autoridades judaicas (Lc 22,3-6).
A fala de Jesus é realmente exigente e desconcertante. Coloca critérios e o discernimento para quem se dispõe a ser seu discípulo. Jesus não quer acompanhantes, pois estes chegam até o limite da conveniência. Jesus quer discípulos que se disponham ao desapego total de tudo o que possa interferir na entrega da vida por amor a Deus e à sua vontade, de acordo com o projeto do Reino.
O verbo grego μισέω (odiar) tem aqui um sentido muito mais forte que a simples antipatia ou aversão, funciona como uma hipérbole, um exagero retórico para marcar a prioridade absoluta que Jesus pretende ter de quem se dispõe a segui-lo. A fala de Jesus alinha-se com o primeiro mandamento: “Amar a Deus sobre todas as coisas”. Desse modo, nada nem ninguém pode se antepor a Jesus na nossa vida. Note-se que as pessoas citadas envolvem o âmbito familiar, mas terminam na própria pessoa que deve tomar a sua cruz e seguir Jesus.
Na verdade, do momento em que o nosso amor é totalmente dado e direcionado a Jesus pelo discipulado, podemos retomar o amor ao pai, mãe, esposa, filhos, irmãos e irmãs de uma forma realmente transformada: por Cristo, com Cristo e em Cristo. Este é o amor ordenado, pelo qual se aprende a rejeitar tudo em nossos familiares que possa interferir na salvação. O ódio deve ser compreendido não à pessoa, mas ao que se pensa ou se faz para impedir que nos doemos de forma íntegra e perfeita a Jesus Cristo e, por Ele, ao nosso próximo.
Jesus, ao dizer, “quem não carrega a própria cruz e vem atrás de mim, não pode ser meu discípulo”, deixa claro duas coisas. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a sua crucifixão ainda não ocorreu. Então, como entender a referência à cruz? Jesus está arrastando atrás de si uma multidão que se dirigia para Jerusalém a fim de viver a festa da Páscoa, celebração que evocava a libertação da escravidão do Egito; logo, para Jesus, sabedor do que lhe esperava em Jerusalém, a cruz tem a ver com a Boa Nova que vem anunciando e que será o motivo da sua prisão e sentença de morte. Nesse sentido, pode ser entendida como profecia. Em segundo lugar, atesta o sentido do discipulado pretendido por Jesus para quem se decide a segui-lo: compreender que o seu ministério não tem a ver com as glórias terrenas de sucesso, poder e vida fácil, mas com a realização da vontade de Deus. Assim, percebe-se que Jesus, pessoalmente, nada antepôs à vontade do Pai em sua vida.
Dois exemplos seguem à dura fala de Jesus e podem ser considerados extremos, e ambos têm a ver com a vergonha e a insensatez. Uma torre era edificada em uma plantação ou em uma cidade murada com a finalidade de vigia e proteção contra possíveis invasores. Do alto de uma torre se vê mais longe e se tem uma melhor dimensão do tamanho do perigo. Começar a edificação de uma torre e não ter o suficiente para terminá-la causava enorme vergonha. De igual modo, ir para uma batalha com um exército menor que o opositor, que tem o dobro, seria uma grande insensatez. Nos dois exemplos é preciso evidenciar o discernimento necessário: “se assenta primeiro e calcula o custo”; “se assenta primeiro e antes consulta se é possível enfrentar” o adversário. Com isto, Jesus está dando aos seus ouvintes o critério para segui-lo até as últimas consequências.
- Que propostas o texto faz?
Os dois exemplos de Jesus podem ser aplicados a diversas situações da nossa vida. Quantas vezes fazemos projetos megalomaníacos, pretendendo alcançar um status na Igreja ou sociedade por pura vaidade? Para se almejar a altos postos e encargos, é preciso que verifiquemos se, de fato, somos capazes de os assumir e de realizar as tarefas que a esses estão atribuídas. O mesmo se diga para diversos postos de trabalho que estão ocupados por pessoas inadequadas e incapazes de obter os resultados que são esperados.
Ambos os exemplos nos lembram que, antes de iniciar qualquer grande projeto – iniciar uma carreira vocacional ou profissional, fazer uma graduação ou pós-graduação, formar uma família ou assumir um novo papel na comunidade de fé ou na sociedade – devemos nos sentar e calcular os custos, avaliando se temos fé, generosidade, capacidades físicas e intelectuais e as forças necessárias não só para iniciar, mas para concluir. Essa “conta” física e espiritual tem que fechar e, para tanto, implica em renunciar ao que, em geral, se busca no mundo (ego exaltado, comodidade, poder, sucesso, vida fácil, etc.), para se colocar Deus acima de tudo, pois só quem está disposto a abrir mão das próprias pretensões pode realmente ser discípulo de Jesus Cristo.
Na prática, todos nós podemos e devemos aplicar essa sabedoria avaliando cada área da nossa vida: família, vocação, profissão, finanças, empreendimentos, tempo livre, espiritualidade, etc. É preciso se perguntar se os recursos emocionais, físicos, financeiros, acadêmicos e de tempo estão ou não canalizados para se viver o Evangelho de forma coerente. Caso a resposta seja “NÃO”, é preciso buscar ajuda, reavaliar os caminhos e abandonar o que impede de se viver um autêntico discipulado. Essa avaliação diária assumida se torna um testemunho autêntico do Reino de Deus, construindo, passo a passo, a torre da fé que nunca será abandonada e não se foge à luta pela concretização do bem, da justiça e da verdade no enfrentamento das seduções ao egoísmo, ao egocentrismo e ao individualismo com os quais todos os dias nos debatemos.
- Que o texto faz dizer a Deus em oração?
Senhor Jesus, por tuas palavras estamos cientes de que a renúncia pessoal a tudo e a todos se tornou o critério do teu discipulado. O ódio ao qual devemos ter não recai sobre as pessoas, mas sobre a influência que podem exercer sobre nós, dificultando e até invalidando o real seguimento do Evangelho em nossas vidas. Vem em nosso auxílio com a tua graça eficaz, a fim de nos tirar da nossa zona de conforto, ensinando-nos a viver o total desprendimento por amor a ti e ao Reino que vieste inaugurar na tua divina Pessoa. Torna-nos conscientes de que somente na obediência a Deus e à sua vontade reencontraremos a liberdade. Que nossas aspirações e nossas batalhas diárias sejam iluminadas pelo teu Santo Espírito, seguindo o teu exemplo por palavras e ações e, assim, por Ele conduzidos sejamos a ti configurados para, em tudo, glorificarmos a Deus. Tu que vives e reinas com Deus Pai, na unidade do Espírito Santo, por todos os séculos dos séculos. Amém.
- Que decisões o texto leva a tomar?
Nada antepor a Jesus Cristo e ao Evangelho do Reino de Deus. A exigência de “odiar” é radical; por esta se aprende a preferir Jesus para que o discipulado seja autêntico. Apenas seguindo Jesus e sua radical opção de vida, que o levou à Páscoa, se retorna à liberdade pela qual somos imagem e semelhança de Deus. Assim, é possível cumprir os mandamentos de Deus que exigem o dom da liberdade reconfigurada à sua divina vontade.
Carregar a própria cruz não é mera resignação, mas um caminho pelo qual se realizam os anseios mais profundos de bem, de justiça e de verdade que residem no íntimo do ser humano. Para quem crê em Deus, o discipulado de Jesus é esse caminho que introduz no verdadeiro sentido da vida, que não busca sucesso, poder ou comodidades, mas se vive a transformação pela qual a busca pelo bem pessoal cede lugar ao bem comum.
Para não nos expormos a surpresas desagradáveis, é preciso ser prudente. A vida cristã não se vem e não se encontra pronta, mas vai sendo edificada como uma torre que se dirige para o alto, a fim de que o campo de visão se amplie e se consiga ver além das aparências deste mundo. É, igualmente, uma batalha que exige estratégias e decisões maduras. Antes de querer vencer os “inimigos” externos, é preciso encarar a luta interior, a fim de se vencer os “inimigos” internos: apegos desordenados em família e a si mesmo, ambições desmedidas, apegos aos bens materiais, impulsividade e falta de comprometimento com o Evangelho e a Igreja.
- Relação entre Lc 14,25-33 e Sb 9,13-18; Sl 89; Fl 9b-10.12-17
A reflexão do sábio e seus questionamentos sobre os desígnios de Deus e os anseios do ser humano encontram a sua devida resposta na radicalidade exigida por Jesus a quem se decide pelo discipulado. Se, para o sábio, o amor à Sabedoria era o caminho adequado para se obter a ciência que conduz a Deus e ajuda a fazer a sua vontade, pela radicalidade da exigência de Jesus se descobre que o caminho sapiencial se faz pelo total desapego, para que o discipulado se torne a verdadeira escola da vida segundo os desígnios de Deus. Nessa escola, o mestre interior é o Espírito Santo. É quem recorda e faz aprender tudo o que Jesus ensinou e fez.
O primeiro resultado que se obtém da dedicação à Sabedoria é o reconhecimento da condição humana frágil e de sua incontestável finitude. Quem aprende a contar os próprios dias vive o presente, preparando o futuro à luz do passado, nunca esquecido, mas sempre valorizado por todos os acontecimentos. A intimidade com Deus pela oração se concretiza nas palavras e ações que se realizam dia a dia. Nesse sentido, a vida não é transcorrida de forma árida ou infértil, amarga ou gasta inutilmente, mas bem administrada e continuamente cultivada pelo dom da Sabedoria porque se tornou caminho, verdade e vida em Jesus Cristo.
A vida em Jesus Cristo, pelo discipulado, é uma graça que traz muitos benefícios. Paulo, na prisão, recebeu o escravo fugitivo Onésimo, que pertencia ao nobre Filêmon, e ali o batizou. Consciente de que não podia ficar com ele, escreveu a carta pela qual restituía Onésimo a Filêmon não mais como escravo, mas como um irmão em Jesus Cristo. A atitude de Paulo demonstra que o verdadeiro discípulo deve estar disposto a abrir mão de vantagens pessoais e a suportar as consequências de sua decisão, exatamente o que Jesus descreve ao dizer que quem não “renunciar a tudo quanto tem” não pode ser seu discípulo. Paulo usou de sabedoria e, em suas palavras e ações, concretizou todos os ensinamentos contidos nas demais leituras, em particular no Evangelho.
Considerações finais
A presente reflexão nos colocou diante de um caminho exigente, mas profundamente libertador. Jesus está em marcha para Jerusalém, consciente de sua missão e decidido a formar discípulos que não se contentem com a superficialidade da fé ou dos seus propósitos pessoais. Ele não busca admiradores nem acompanhantes, mas discípulos dispostos a renunciar tudo, inclusive os vínculos mais íntimos, por amor ao Reino de Deus.
A linguagem provocadora de Jesus, especialmente pelo uso do verbo “odiar”, revela a urgência de uma escolha que não admite meias medidas. Amar a Deus sobre todas as coisas implica reorganizar afetos, projetos e prioridades. O verdadeiro amor cristão não exclui os outros, mas os reintegra na própria vida sob a luz do amor verdadeiro: por Cristo, com Cristo e em Cristo, na unção do Espírito Santo, para a glória de Deus Pai.
Os exemplos da torre e da batalha nos ensinam que o discipulado exige discernimento e planejamento. Não se trata de entusiasmo passageiro, mas de uma decisão madura que considera os custos e se compromete com a conclusão. A vida cristã, portanto, é uma construção contínua e uma luta constante contra as ilusões do ego, os apegos desordenados e a tentação de uma fé confortável e aos moldes do próprio bem pessoal.
As propostas de Jesus nos desafiam a aplicar esse discernimento em todas as áreas da vida: vocação, profissão, família, espiritualidade. A coerência entre fé e vida exige avaliação constante, renúncia consciente e abertura à graça que transforma. A oração expressa esse desejo de entrega total. Peçamos a força do Espírito Santo para viver o Evangelho com autenticidade. Seguir Jesus é mais do que admirá-lo, é configurar-se a Ele. Isso exige coragem, renúncia e fé que não se contenta com o raso, mas impulsiona para uma vida transformada.
Pe. Leonardo Agostini Fernandes
Capelão da Igreja do Divino Espírito Santo do Estácio de Sá, RJ
Docente de Sagrada Escritura do Departamento de Teologia da PUC-Rio