Uma reflexão sobre a comunhão espiritual em tempos de reclusão social
O que é dito insensatez de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é dito fraqueza de Deus é mais forte do que os homens. Na verdade, Deus escolheu o que o mundo considera estúpido, para assim confundir os sábios (1Cor 1,25.27a).
Introdução
O cristão, plenamente iniciado na fé, é uma pessoa eucarística. Vive da Eucaristia, porque crê e professa que, nela, Jesus Cristo está realmente presente, com o seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade. A fé nessa presença não tem tanto a ver com o milagre, mas com a eficácia das palavras que o próprio Jesus Cristo disse, quando instituiu o Memorial de sua Paixão, Morte e Ressurreição: “Isto é o meu corpo, que é para vós; fazei isto em memória de mim… Este cálice é a nova Aliança em meu sangue; todas as vezes que dele beberdes, fazei-o em memória de mim” (1Cor 11,24-25).
Contudo, essa presença é sacramental; isto é, ocorre através de um meio eficaz pelo qual algo ou alguém sagrado se faz presente em realidades sensíveis, como no caso do pão e do vinho usados por Jesus Cristo na Última Ceia e ressignificados a partir da festa pascal do seu povo. Jesus Cristo, assim, tendo pão e vinho em suas mãos, uniu gestos e palavras, pelos quais comunicou a salvação.
No momento em que os discípulos comeram e beberam do pão e do vinho eucaristizados pelas palavras consecratórias de Jesus Cristo, não estavam, realmente, comendo a sua carne ou bebendo o seu sangue, pois não se trata de uma ação antropofágica, mas de experimentar a força e a graça que derivariam da sua ação em vista da sua total e incondicional entrega no Mistério Pascal.
Nesse sentido, a instituição da Eucaristia foi uma recapitulação-antecipação de tudo o que aconteceu no seu ministério público e de tudo o que estava para acontecer, desde a prisão no Horto das Oliveiras à sua ressurreição do sepulcro. Assim, Jesus Cristo realizou, diante de e para os seus apóstolos, a eficácia do seu amor de modo sacramental; fez com que experimentassem a vitória sobre a morte antes dela ocorrer. A Igreja, a partir desse momento, nunca mais deixou de celebrar a Eucaristia, e esta é a vida que a sustenta até que Jesus Cristo venha para julgar os vivos e os mortos.
A comunhão sacramental e a espiritual
Ao longo dos séculos, a Igreja foi imergindo, cada vez mais profundamente, na compreensão do mistério eucarístico, razão pela qual passou a celebrar a Eucaristia não apenas aos domingos, mas também nos dias da semana. Pouco a pouco, foram se multiplicando as celebrações, e os méritos de Jesus Cristo foram aplicados às mais diversas circunstâncias. Em muitas ocasiões, porém, a Igreja se viu impossibilitada de ministrar aos fiéis o Sacramento da Eucaristia, como guerras, perseguições, pestes, epidemias etc.
De tal modo que a reflexão sobre o Sacramento da Eucaristia levou a Igreja a se aprofundar quanto ao seu sentido e à duração da sua eficácia no tempo, no espaço e na vida de cada fiel. Se a Igreja julgou relevante ordenar a comunhão eucarística, ao menos uma vez por ano, bem como a recepção do Sacramento da Reconciliação e Penitência, como condição prévia, o fez por possuir a plena consciência da ilimitada eficácia que reside na obra da redenção realizada por Jesus Cristo.
É com base nessas premissas que se pode falar de comunhão sacramental, de comunhão espiritual e de ambas conjuntamente. Santo Tomás de Aquino fez essa distinção, ao falar dos dois modos de se receber a Eucaristia (STh III, q. 80, a.1). No caso da comunhão sacramental, acontece a recepção de Jesus Cristo através das espécies visíveis do pão e do vinho eucaristizados, mas, ainda assim, se está recebendo um alimento espiritual, visto que resulta de uma ação sacramental; logo do que esta ação concretamente representa: a comunhão espiritual com Jesus Cristo e sua Igreja.
Nesse sentido, uma está ordenada para a outra, quer dizer: não deveria haver comunhão sacramental que não fosse espiritual, e não deveria haver comunhão espiritual que não fosse sacramental. Uma, então, não deveria existir sem a outra, e ambas, na verdade, se completam. Assim sendo, perfeita comunhão sacramental acontece quando é também espiritual, e a perfeita comunhão espiritual acontece quando, existindo um impedimento real que independe das reais condições de cada fiel, este, de modo contrito e humilde, arde de desejo pelo seu Senhor, presente visivelmente no Santíssimo Sacramento do Altar.
Aqui reside um grande mistério. Muitos recebem a comunhão sacramental, mas não se abrem ou comungam indignamente, deixando de se beneficiar plenamente dos seus efeitos. Outros, ainda que impedidos de receber a comunhão sacramental, a desejam de tal forma que experimentam a eficácia dos seus efeitos. Isto não é difícil de ser percebido, pois se está diante da intenção pela qual Nosso Senhor instituiu a Eucaristia: “Pois onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estou ali no meio deles” (Mt 18,20); “E eis que estou convosco até a consumação dos tempos” (Mt 28,20).
Diante da atual situação
Pois bem, como está ocorrendo nesse momento, a Igreja continua celebrando o Sacramento da Eucaristia, mas de modo privado e sem a presença do povo, impedido, contra a sua vontade, de participar e de receber a comunhão nas espécies consagradas. Contudo, embora esteja sem receber o sacramento, o fiel pode receber a eficácia que dele deriva. Disso se trata a comunhão espiritual, pela qual os efeitos salutares da Eucaristia são comunicados, estando o fiel presente ou não à celebração. Desde de que, de todo o coração, o fiel deseje a sua união com Jesus sacramentado, pela fé e pela caridade que derivam da Eucaristia, a sua comunhão é válida e seus efeitos são eficazes na sua vida.
Pela comunhão espiritual, portanto, ocorre o encontro de dois desejos. Por um lado, do Senhor que disse: “Desejei ardente comer convosco essa páscoa antes de sofrer. Ao que acrescentou: pois eu vos digo que já não a comerei até que ela se cumpra no Reino de Deus” (Lc 22,15-16). Nota-se que há um hiato entre a celebração da páscoa-eucaristia e o seu cumprimento no Reino de Deus. Por outro lado, do desejo de cada fiel que está vivendo esse hiato que o impossibilita de receber a comunhão sacramental. Nessas circunstâncias, o hiato não só pode como deve ser preenchido pela comunhão espiritual, permitindo que, no fiel, o desejo da comunhão sacramental esteja unido ao desejo do Senhor que quer estar nele e em cada um de seus irmãos e irmãs de forma plena e eficaz.
Se o batismo de desejo é eficaz quando houve a impossibilidade de recebê-lo, de igual modo é eficaz a comunhão espiritual que expressa o desejo sincero de se receber a comunhão sacramental.
Sobre isso, o Concílio de Trento ensina que os impossibilitados de receber Jesus Cristo na Santa Eucaristia, “o recebem em espírito, fazendo atos de fé viva e ardente caridade, e com um grande desejo de se unirem ao soberano Bem, e, por meio disto, se põem em estado de obter os frutos do Divino Sacramento” (Sess. XIII, c.8.).
Cabe agora refletir sobre quando e como fazer a comunhão espiritual. Se no passado os sinos das igrejas indicavam o momento da consagração, permitindo que os fiéis impossibilitados de fazer a comunhão sacramental o pudessem fazer de forma espiritual, nos nossos dias, graças às diversas formas televisivas, radiofônicas e midiáticas, o fiel pode se predispor a seguir o Santo Sacrifício da missa de forma contrita e, na hora da comunhão do presbítero, tendo feito um sincero ato de contrição, seguido do pedido de perdão, se confiar à Divina Misericórdia e desejar, vivamente, o amor que se encontra presente e inexaurível na comunhão sacramental.
O fervor desse momento pode ser acompanhado da mais pura imaginação, ajudada de várias maneiras. Por isso, nada melhor do que preparar, em lugar apropriado, um altar familiar, com velas, um Crucifixo, a Sagrada Escritura, uma imagem de Nossa Senhora etc. São sinais, pelos quais o fiel, endereçará ao Senhor Jesus, pessoalmente, o convite para vir habitar e preencher todo o seu ser. Sugere-se que o momento da comunhão espiritual seja seguido com uma breve oração:
“Creio, meu dulcíssimo Jesus, que estais real e verdadeiramente presente à destra de Deus Pai e no Santíssimo Sacramento do Altar, sobre as espécies consagradas do pão e do vinho. Eu vos amo sobre todas as coisas e desejo, vivamente, receber-vos dentro do meu ser. Não podendo, agora, vos receber sacramentalmente, vinde, ao menos, espiritualmente na minha vida, em minha mente e em meu coração. Em meu íntimo e com todo o fervor, me uno a vós e aos meus irmãos e irmãs. Senhor, que eu nunca me separe de vós. Amém.”
Considerações finais
Se no passado, a comunhão espiritual foi tão pouco praticada, pois, relativamente, em todas as horas do dia era possível receber a comunhão sacramental, hoje, por uma situação de reclusão social, permitida pelo Senhor, se redescobre esse grande tesouro, capaz de encher a alma de tantos e incalculáveis bens. Assim, o que de fato acontece em cada comunhão sacramental, com disposição perfeita, é possível, igualmente, se suprir a sua falta pela comunhão espiritual, podendo-se obter, segundo a Divina Providência, todas as graças e bênçãos que, inclusive, em muitas comunhões sacramentais se deixou de receber por negligência ou por falta do devido amor à Sagrada Eucaristia.
Em muitos de nós, esse momento de real impossibilidade da comunhão sacramental permite que se experimente a dor de muitos fiéis, irmãos e irmãs nossos, que desejam comungar e, por algum motivo, estão impedidos ou não a podem fazer. É como diz o ditado popular: “muitos só dão o real valor quando perdem ou ficam sem o que sempre tiveram em abundância”.
Que a nossa comunhão espiritual abrase nossa vida na ardente fornalha do amor de Deus e, a Ele unidos, estejamos cada vez mais atentos aos seus apelos de amor pelos mais necessitados. Que a graça da comunhão espiritual elimine a nossa insensibilidade e indiferença, pois, ao contrário da comunhão sacramental, as graças da comunhão espiritual podem ser recebidas várias vezes ao longo do dia e aplicadas às mais diferentes necessidades pessoais, sociais e eclesiais.
Divino Jesus Eucarístico, eu confio e espero em vós!
Padre Leonardo Agostini Fernandes