Nossa Senhora da Conceição Aparecida – Solenidade

Leituras:

1ª Leitura – Est 5,1b-2;7,2b-3

Salmo – Sl 44(45),11-12a.12b-13.14-15a.15b-16 (R. 11.12a)

2ª Leitura – Ap 12,1.5.13a.15-16a

Evangelho – Jo 2,1-11

 

A liturgia da Palavra na solenidade mariana que celebramos hoje aponta-nos para a importância da oração de intercessão em benefício daqueles que padecem variadas necessidades, sobretudo, quando a vida do outro encontra-se ameaçada. Ester, no Antigo Testamento, e Maria, no Novo, são exemplos de uma vida ofertada a Deus, agindo em benefício daqueles que sofrem. Essas mulheres refletem a imagem daqueles que têm os corações dilatados à Palavra de Deus e, dialogando com o Senhor, estão disponíveis para levar a bom termo a missão à qual foram chamados.

 

Na primeira leitura, ouvimos um texto do livro de Ester que narra o episódio em que o povo judeu, sentenciado à morte, alcança o favor de Deus em virtude da intercessão de Ester. Ela, abandonando suas vestes de realeza e vestindo-se com roupas de aflição e luto, cobrindo sua cabeça de cinzas, humilhou-se diante de Deus e suplicou ao Senhor pela salvação do seu povo (cf. Est 4,17). Terminada a sua oração, vestindo-se novamente com as roupas de rainha e aproximando-se do rei Assuero que lhe concede pedir o que desejar (cf. Est 5,1b-2), Ester intercede pela vida dos judeus, seus irmãos (cf. Est 7,2b-3). A sua intercessão é acolhida e a vida do seu povo é preservada da morte.

No Evangelho de hoje, uma espécie de “eco” da primeira leitura, escutamos o texto que narra o episódio das “Bodas de Caná” (Jo 2,1-11), apontando, igualmente, para a importância de intercedermos pelas necessidades daqueles que se encontram em apuros. No texto evangélico da solenidade desse dia, João tem como objetivo mostrar o primeiro sinal de Jesus que, dentre outros sinais, indica uma ação simbólica que convida o leitor a uma realidade mais profunda. Segundo Emanuel Bouzon, o relato é muito conciso e pode ser meditado em três cenas distintas: a primeira, Maria e Jesus (cf. Jo 2,1b-5); a segunda, Jesus e os servos (cf. Jo 2,7-8); a terceira, o mestre-sala e o noivo (cf. Jo 2,10). “A primeira e a segunda cenas estão ligadas entre si pelo tema da preocupação de Maria. A ordem de Jesus aos servos liga a segunda com a terceira cena”[1].

Em nosso lecionário, foi omitida a expressão “No terceiro dia” que dá início ao texto evangélico que escutamos. De Jo 1,19 a 2,11, o evangelista organizou os relatos situados dentro de um quadro que dura uma semana, contados quase dia por dia[2]. Aqui, o terceiro dia corresponde a “dois dias depois do quarto dia”, ou seja, após o encontro com Filipe e Natanael (cf. Jo 1,43-51). Desse modo, observamos que as “Bodas de Caná”, no sexto dia, encerram a semana de atividade de Jesus e, nelas, de modo prefigurado, ele revela a sua glória. Fazendo uma alusão ao livro Gênesis, no sexto dia foi criada a humanidade. Assim, o episódio das “Bodas de Caná” é o retrato antecipado da nova humanidade inaugurada por Jesus. “De fato, duas ideias básicas, tiradas do Antigo Testamento, estão sempre presentes no Evangelho de João: aliança e criação. Jesus inaugura a Nova Aliança e dá início à Nova Criação. No sexto dia, nas Bodas de Caná, temos, portanto, o retrato da nova humanidade”[3].

Na primeira cena, o evangelista destaca a presença de Maria em diálogo com seu Filho. Emanuel Bouzon assevera que, conforme o costume judaico, “a festa de casamento de uma noiva virgem durava uma semana e era consumido muito vinho”[4]. Diante de uma situação difícil, vivida pelo noivo ao saber que o vinho havia terminado quando a festa estava em seus últimos dias, Maria interpela Jesus, mostrando a angústia dos noivos, dizendo-lhe: “Eles não têm mais vinho” (Jo 2,3). O vinho é um elemento muito precioso para os judeus e, nos textos veterotestamentários, o povo eleito é comparado a uma vinha que Deus escolheu e cultivou com todo o seu amor (cf. Jr 2,21; 12,10). Após ouvir a preocupação de Maria, Jesus questiona a interpelação de sua mãe (cf. Jo 2,4a) e lhe diz que a sua hora ainda não chegou (cf. Jo 2,4b).

Muito mais do que um elemento cronológico, a “hora de Jesus” é um registro próprio do Evangelho de João e marcada por uma densidade teológica peculiar do evangelista. O termo “hora” no Evangelho joanino está em estreita relação com a morte do Senhor (cf. Jo 7,30; 8,20) e com a sua glorificação (cf. Jo 12,23.27.31-32; 13,31; 17,1-2). Na festa de casamento em Caná, Jesus realiza uma antecipação daquilo que ele manifestará por meio da sua morte na cruz. No final dessa primeira cena, Maria diz aos que estavam servindo: “Fazei o que ele vos disser” (Jo 2,5). Diante dessa fala, conseguimos contemplar duas imagens bíblicas nas quais a mãe de Jesus tem um forte protagonismo: mulher de fé inquebrantável (cf. Lc 1,38.45), disponibilidade e generosidade para socorrer o próximo (cf. Lc 1,39.56). Sua resposta aos que serviam vinho prepara o ambiente para a ação de Jesus.

A segunda cena é antecipada pela informação de que, naquela festa de casamento, tinham seis talhas de pedra, em cada uma delas cabiam mais ou menos cem litros e estavam ali para a purificação, conforme o costume dos judeus (cf. Jo 2,6). Em seguida, “Jesus disse aos que estavam servindo: ‘Enchei as talhas de água’. Encheram-nas até a boca. Jesus disse: ‘Agora tirai e levai ao mestre-sala’. E eles levaram. O mestre-sala experimentou a água, que se tinha transformado em vinho. Ele não sabia de onde vinha, mas os que estavam servindo sabiam, pois eram eles que tinham tirado a água” (Jo 2,7-9). Aqui, existem vários elementos de profunda reflexão. Por isso, ao levar em consideração a linguagem matrimonial que descreve a relação entre Deus e o seu povo, o casamento, nas Sagradas Escrituras, alude à Aliança.

Nos textos proféticos, ser infiel à Aliança de Deus equivale ao “adultério” e à “prostituição”. Foi dessa forma que Israel se comportou em relação ao seu Criador-Libertador. As talhas de pedra descritas por João pela sua quantidade (seis), simbolizam tanto a incompletude como a sua imperfeição. Ao afirmar que as talhas são de pedra, elas evocam as tábuas de pedra da Lei do Sinai (cf. Ex 24,12) e os corações de pedra dos israelitas (cf. Ez 36,26). A Antiga Lei parece ter caducado e os ritos de purificação que a sustentavam não são mais essenciais para aqueles que desejam unir-se em “matrimônio” com o Senhor. As talhas vazias representam a esterilidade dos ritos antigos que não serviam mais para unir o homem a Deus, ao contrário, afastavam-no e tornavam a criatura cada vez mais distante do seu Criador. Os serventes, obedecendo a ordem de Jesus para que enchessem as talhas de água e “a observação de que eles as encheram até a borda é importante para mostrar a riqueza do dom de Jesus”[5]. O vinho que antes faltava, agora transborda. A Antiga Lei não consegue conter a riqueza e a profundidade da Nova Lei que é o amor derramado nos corações de todos aqueles que crerem no Filho de Deus. Como diziam os Padres da Igreja primitiva: “A água da lei é transformada no vinho inebriante da graça”.

Na terceira e última cena, podemos observar que a grande quantidade de vinho e a sua qualidade irreconhecível por parte do mestre-sala que se dirige ao noivo (cf. Jo 2,10), “simbolizam a abundância da graça de Deus que surgiu no meio da festa dos homens; festa ‘sem vinho!’ (…) O milagre não é feito para que bebam vinho; mas para que, bebendo, creiam”[6]. Assim como as núpcias equivalem ao símbolo da bondade salvífica de Deus, o vinho é o símbolo do amor e da alegria. Agora, providenciado por Jesus em Caná, o vinho é o sinal da sua chegada messiânica e revelada plenamente na sua cruz. Nela, ferido de amor pelo seu novo povo, derramou, do seu lado aberto, o vinho da salvação, reconciliando, em si mesmo, todo o gênero humano com o Pai. Dessa maneira, João tem como finalidade destacar a pessoa de Jesus como o verdadeiro noivo que, por meio do seu amor pascal, desposará a nova humanidade inaugurada pela sua Nova Aliança.

Se no Antigo Testamento, o Senhor caminhava com os hebreus, dando-lhes o alimento, a água, a Lei e, com ela, a Aliança; no Novo Testamento, Cristo caminha lado a lado com os homens, dando-lhes, não o maná, mas o seu próprio corpo glorioso como alimento, antecipando, assim, a eterna comunhão com o Pai; igualmente, não lhes dá água, mas o vinho da divina mesa que é o seu sangue; não lhes dá a “lei da letra”, mas a graça do seu amor e, com ela, não acrescenta uma aliança a mais, mas realiza a única e definitiva Aliança.

Essa Nova Aliança foi testemunhada pelo apóstolo João, seja pela sua participação na última ceia (cf. Jo 13,23), seja pela sua participação na morte de Jesus na cruz (cf. Jo 19,26-27). Na segunda leitura, se o apóstolo João vive num ambiente no qual os cristãos da Igreja nascente sofrem uma cruel hostilidade e perseguição, ele também experimenta o socorro de Deus em seu favor e de toda a sua comunidade. Arrebatado pelo Espírito de Deus, João tem a visão de um grande sinal que surge nos céus, uma mulher vestida de sol, cuja lua está debaixo dos seus pés e sobre a sua cabeça uma coroa de doze estrelas (cf. Ap 12,1). Na verdade, essa imagem “simboliza o povo único de Deus, o do Antigo Testamento que agora é conhecido no Novo”[7]. É a Igreja que, perseguida pelo dragão, representando as forças do mal, não será destruída em virtude daquele que a protege, o próprio Deus. Alguns padres da Igreja, seguindo o método tipológico, interpretaram a imagem da mulher vestida de sol, aplicando-a à Maria. Com ela, por meio de dores, a Igreja gera uma nova humanidade e participa da vitória sobre o mal.

Amados irmãos e irmãs, peçamos ao Cristo que olhe para as nossas indigências e derrame sobre elas o vinho curativo do seu Espírito para que possamos celebrar todos os dias a festa da nossa existência e cantar ao Senhor Deus um canto novo (cf. Sl 95,1a). Vindo em nosso socorro, o Filho de Deus opera os seus sinais para que a sua glória se manifeste em nós (cf. Jo 2,11) e, como seus discípulos, possamos crer que ele é o verdadeiro “esposo” de nossas vidas. Ainda que passemos por variados vales da sombra da morte, não tenhamos medo porque o Cristo, nosso Bom Pastor, caminha ao nosso lado (cf. Sl 22,4), protegendo as nossas vidas.

Nesse domingo, celebrando a solenidade de Nossa Senhora da Conceição Aparecida, temos a grande alegria de ter a Mãe de Deus como padroeira do Brasil, terra de Santa Cruz. A fim de ajudar todos os cristãos em relação ao culto da Virgem Maria, São Paulo VI afirma que “antes de mais nada, a Virgem Maria foi sempre proposta pela Igreja à imitação dos fiéis, não exatamente pelo tipo de vida que ela levou ou, menos ainda, por causa do ambiente sociocultural em que se desenrolou a sua existência, hoje superado quase por toda a parte; mas sim, porque, nas condições concretas da sua vida, ela aderiu total e responsavelmente à vontade de Deus (cf. Lc 1,38); porque soube acolher a sua palavra e colocá-la em prática; porque a sua ação foi animada pela caridade e pelo espírito de serviço; e porque, em suma, ela foi a primeira e a mais perfeita discípula de Cristo, o que, naturalmente, tem um valor exemplar universal e permanente”[8]. Que a intercessão da Mãe de Deus, a Virgem da Conceição Aparecida, favoreça a todo o povo brasileiro o socorro do seu Filho para que, fazendo o que ele nos disser (cf. Jo 2,5), as desigualdades sociais, que geram violência e ferem o amor de Deus, sejam erradicadas e alcancemos, com a sua presença maternal (cf. Jo 2,1), as graças do amor pascal convertidas em saúde, prosperidade, justiça e paz.

 

Pe. Eufrázio Morais

 

[1] BOUZON, E., ROMER, K. J. A Palavra de Deus – No anúncio e na oração, p.175.

[2] 1º dia (Jo 1,19-28); 2º dia (Jo 1,29-34); 3º dia (Jo 1,35-42); 4º dia (Jo 1,43-51); 6º dia (Jo 2,1-11).

[3] BORTOLINI, J. Roteiros homiléticos, p.579.

[4] BOUZON, E., ROMER, K. J. A Palavra de Deus – No anúncio e na oração, p.175.

[5] BOUZON, E., ROMER, K. J. A Palavra de Deus – No anúncio e na oração, p.176.

[6] BOUZON, E., ROMER, K. J. A Palavra de Deus – No anúncio e na oração, p.178.

[7] VANNI, H. Apocalipse, p.66.

[8] PAULO VI. Exortação Apostólica Marialis Cultus, n.35.

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