O cardeal do diálogo

A diversidade religiosa é um traço de nossa cultura. Somos um povo composto por muitas etnias, muitos credos, muitas origens e vertentes. O reconhecimento destas variantes é o próprio relevo das possibilidades oferecidas pelo Criador. Contudo, nem sempre tal compreensão foi assim tão abrangente.

Os primeiros estrangeiros que pisaram neste solo trouxeram consigo suas expectativas e verdades. Desde o início do período colonizatório brasileiro, no entorno de 1530 d.C., a liberdade e o respeito aos diversos cultos já aqui existentes entre os indígenas, assim como aos ritos e credos trazidos pelos africanos, não fizeram parte da pauta dominante.

Apesar dessa integração, as relações entre a Igreja Católica e os cultos afro não foram sempre amenas. São inúmeros os relatos, os documentos históricos, assim como narrativas imortalizadas em livros e na dramaturgia, que nos remetem a uma era de hostilidades e de rejeição às práticas afro-brasileiras. As relações se mostraram bastante tensas e pouco amistosas. Este clima se estendeu, desde o Brasil Colônia até, aproximadamente, a década de 60, do século XX.

O preconceito racial e religioso estão entre nós há muito tempo. Notadamente no que alude às religiões de matrizes africanas, a rejeição, a perseguição e a demonização são transversais às questões étnicas. Todavia, o desenvolvimento de novas propostas sociais voltadas ao povo oprimido e excluído, por parte da Igreja Católica, e as atitudes inclusivas para com as populações vulnerabilizadas foram, gradadativamente, reformando positivamente esses vínculos. Hoje, não há dúvidas, a Igreja Católica é uma grande aliada da liberdade de credo e uma reconhecida promotora do diálogo inter-religioso.

Somente observando o histórico citado podemos dimensionar a proporção desse movimento católico em prol da unidade. Ressalte-se que a construção do diálogo entre as religiões foi erigido, ao longo do tempo, graças ao empenho de figuras e ações memoráveis.

Em 1965, no Concílio Vaticano II, foi produzido o documento denominado Nostra Aetate, o qual afirma que a Igreja “exorta por isso seus filhos a que, com prudência e amor, através do diálogo e da colaboração com os seguidores de outras religiões, testemunhando sempre a fé e vida cristãs, reconheçam, mantenham e desenvolvam os bens espirituais e morais, como também os valores socioculturais que entre eles se encontram” (NA, 2)[1]. Com isto, o diálogo inter-religioso passou a integrar formalmente a missão da Igreja Católica.

Após 34 anos da convocação do Dia Mundial de Oração pela Paz, o Papa João Paulo II, em 27 de outubro de 1986, marcou história ao convidar lideranças de diversas religiões para um encontro de oração pela paz na cidade de Assis, na Itália. Este encontro significou importante paradigma para o catolicismo, no que diz respeito ao diálogo inter-religioso. Na ocasião, João Paulo II declarou: “Antes as religiões ou estavam umas contra as outras, ou eram indiferentes. Hoje, vemos que as religiões, fortes pelas suas diferenças, são colocadas a serviço de um projeto para a Humanidade”[2]. Desde aquele evento, a cada ano, novos encontros foram promovidos no mundo inteiro, para repercutir o que os católicos passaram a chamar de “espírito de Assis”.

Em 2016, 30 anos após o evento protagonizado por João Paulo II, o Papa Francisco repetiu o gesto. Entretanto, Francisco conferiu ao diálogo inter-religioso um status ainda mais profundo. Segundo Francisco, “o diálogo inter-religioso é uma condição necessária para a paz no mundo, e também é um dever para os cristãos como para outras comunidades religiosas” (EG, n. 250, 2013, p. 142)[3].

Na esteira do papado de Francisco, o cardeal arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Orani João Tempesta, o sexto cardeal da cidade, destaca-se como um baluarte do diálogo entre os diferentes credos. Aqui no Rio de Janeiro, onde exerce o episcopado desde 2009, D. Orani atua em uma diocese de referência mundial. Vale dizer que o Rio de Janeiro, que já foi capital da República, é a atual capital do estado e consiste em um município cuja referência cultural extrapola seus limites geográficos. Apesar disso, é ainda uma das cidades com maior desigualdade social, marcada por casos de racismo e de intolerância religiosa, em que pese os avanços nessa área. Somente até abril de 2022, foram registrados 29 episódios de intolerância religiosa junto à Coordenadoria Executiva de Diversidade Religiosa do Rio de Janeiro. No Brasil, registrou-se um aumento dos casos de intolerância religiosa, da ordem de 141% em relação ao ano anterior, que teve 243 denúncias, segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH).

Justamente neste cenário, em 2020, D. Orani resolveu criar um fórum denominado Diálogos pela Paz, convidando líderes religiosos de diversas matrizes para integrá-lo. Dentre eles: judeus, muçulmanos, protestantes e de matrizes africanas[4].

Trata-se do primeiro grupo desta natureza criado e liderado por um cardeal em todo o mundo. Em decorrência deste trabalho, surge a Comissão Inter-Religiosa de Juristas pela Paz[5], integrada por operadores do Direito com as mais variadas confissões religiosas. Tal comissão já protagonizou interlocuções junto a diversos órgãos nacionais e internacionais, a Comissão Parlamentar de Inquérito sobre Intolerância Religiosa no Estado do Rio de Janeiro; o Conselho Nacional de Justiça; e o Parlamento Belga.

A atuação de D. Orani é, sem dúvida, paradigmática. Trata-se de um homem que, embora muito à frente de seu tempo, resgata exemplos cristãos dos mais memoráveis e inspiradores. Orani João Tempesta, já é um nome na história: o Cardeal do Diálogo.

 

Pai Márcio de Jagun, escritor, advogado, professor de cultura yoùbá, babalorixá e fundador do Instituto Orí

[1] Fonte: https://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/documents/vat-ii_decl_19651028_nostra-aetate_po.html. Consultada em 30 de março de 2022.

[2] Fonte: https://www.vaticannews.va/pt/igreja/news/2020-10/fratelli-tutti-assis-padre-dell-olio-fraternidade.html. Consultada em 23 de março de 2022.

[3] Fonte: https://franciscanos.org.br/vidacrista/papa-francisco-e-o-dialogo-inter-religioso/#gsc.tab=0. Consultada em 23 de março de 2022.

[4] O autor é membro do grupo Diálogos pela Paz, desde a sua fundação, como representante do candomblé.

[5] O autor também integra esta comissão, pelo candomblé.

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