Cirilo de nasceu em Teodósia do Egito no ano de 370 e morreu em Alexandria, em 444. Cirilo tornou-se Patriarca de Alexandria em 18 de outubro de 412. Participou de inúmeras disputas teológicas e legou-nos grande obra escrita. Dentre seus comentários bíblicos, destacamos aqui uma passagem dedicada ao Evangelho de Lucas. Passagem em que o Patriarca Alexandrino comenta os versículos tomados de Lucas 9, 57-58: ‘Enquanto estavam caminhando, alguém na estrada disse a Jesus: ‘Eu te seguirei para onde quer que fores’. Jesus lhe respondeu: ‘As raposas têm tocas e os pássaros têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça’”.
Cirilo mostra de imediato que seguir Jesus consiste em buscar ‘as coisas do alto’, de modo que tece seus comentários opondo as coisas terrenas e as ‘do alto’: “Cobiçar os dons que vêm do alto de Deus é, na verdade, um estado de espírito digno de ser alcançado, e isto atrai para nós todo bem. Embora o Senhor de tudo seja Doador abundante, Ele não premia todos os homens sem distinção, mas, antes, que são dignos de Sua generosidade. Pois assim como aqueles investidos com a glória da realeza concedem suas honras e os vários cargos de estado, não a homens rudes e ignorantes, que nada têm neles dignos de admiração, mas coroa aqueles que têm nobreza hereditária e foram provados por julgamento digno de recebê-los, e provavelmente possam ter sucesso no cumprimento de seus deveres, assim também Deus, que conhece todas as coisas, não concede uma parte de suas graças às almas descuidadas e à procura de prazeres, mas aos que estão em estado adequado para recebê-las. Se, então, alguém for considerado digno dessas grandes honras e de ser aceito por Deus, que ele primeiro se livre da poluição do mal e da culpa da indiferença; pois assim se tornará capaz de recebê-las: mas se esta pessoa não tiver disposição de espírito, deixe-a partir para longe” (Cirilo de Alexandria. ‘A Commentary upon the Gospel According to S. Luke’. Vol. I. By R. Payne Smith. Oxford: The University Press., 1859, p. 258, tradução do autor).
Contudo, a surpresa que esses versículos causam reside justamente numa espécie de rejeição por parte de Jesus àquele que se declara de súbito disposto a segui-Lo: “E este é o propósito do que nos ensina a passagem dos evangelhos que acabamos de pôr diante de nós: porque certo homem se aproximou de Cristo, o Salvador de todos nós, dizendo: ‘Mestre, eu te seguirei aonde quer que fores’. Mas Ele rejeitou o homem, dizendo: ‘As raposas têm tocas e os pássaros têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça’. E, no entanto, talvez alguém possa dizer que aquele que prometeu segui-Lo alcançou o desejo do que era honroso, bom e útil. Pois, que é comparável estar com Cristo e segui-Lo? Ou, como isso não deveria ajudar em sua salvação? Por que, portanto, Jesus rejeitou aquele que prometia ansiosamente segui-Lo constantemente? Pois, aprendemos de Suas próprias palavras, que segui-Lo comporta bênçãos a todos, porque Ele disse: ‘Aquele que me segue não anda em trevas, mas possui a luz da vida’, Jo 8, 12. O que, portanto, havia de impróprio em prometer segui-Lo, a fim de ganhar a luz da vida? Qual é então a nossa resposta para isso? Este, entretanto, não era seu objetivo. E qual poderia ser? Pois é fácil para qualquer um que examinar tais assuntos com precisão, perceber que em primeiro lugar havia uma grande ignorância em sua maneira de se aproximar de Cristo. E em segundo lugar, havia aí excesso de presunção. Pois o desejo não era simplesmente seguir Cristo, como tantos outros judeus fizeram, mas, em vez disso, confiar-se honras apostólicas. Foi isto, então, o que ele procurava, autoconvocando-se para esse chamado. Ao contrário, o beato Paulo escreve que ‘ninguém tome a honra para si mesmo, a menos que seja chamado por Deus, como o foi Arão’, Hb 5, 4. Pois Arão não entrou no sacerdócio por si mesmo, mas, pelo contrário, foi chamado por Deus. E sobre cada um dos santos apóstolos encontramos que nenhum deles promoveu-se ao próprio apostolado, mas antes recebeu a honra de Cristo, pois Ele disse: ‘Vinde a Mim e eu vos farei pescadores de homens’, Mc 1, 17” (p. 258-259).
A comparação do coração do homem com a astúcia da raposa ajuda a compreender a passagem paradoxal que Cirilo vem comentando: “Novamente, o versículo ‘as raposas têm tocas e os pássaros têm ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça’ significa que “os animais e os pássaros têm covis e moradas, mas Eu não tenho nada a oferecer daquelas coisas que são objetos de desejo geral: pois não tenho onde morar, nem descansar, nem deitar a cabeça. Mas o significado íntimo e secreto dessa passagem alcança-se por pensamentos mais profundos, pois Ele parece referir-se, por raposas e pássaros do céu, àqueles poderes perversos, astutos e impuros, os rebanhos de demônios. Porque estes são assim chamados em muitos lugares nas Escrituras inspiradas. Assim o abençoado salmista diz de certos homens: ‘eles serão uma porção para as raposas’, Sl 63, 11. E, no Cântico dos Cânticos 2, 15, está escrito novamente: ‘Pegai para nós as raposas e as raposinhas que destruam as videiras’. E o próprio Cristo, em algum lugar, diz de Herodes que era um homem mau, e astuto em sua maldade: ‘Ide dizer a essa raposa…’, Lc 13, 32. E em outro lugar Ele disse das sementes que caíram sobre o caminho, ‘as aves do céu vieram e as devoraram’, Lc 8, 5” (p. 261).
Contudo, o mais importante nessas palavras de Cristo, dentro de um estilo que se considera proverbial, é exortar seus seguidores à sinceridade de coração no seguimento de seu caminho: “E defendemos que Ele disse isso não a respeito das aves materiais e visíveis, mas sim desses espíritos impuros e maus, que muitas vezes, quando a semente celestial cai sobre os corações de homens, eles a removem e, por assim dizer, levam-na para longe, para que não produzam fruto. Enquanto, pois, as raposas e os pássaros tiverem buracos e covas em nós, como pode o Cristo entrar? Onde pode Ele descansar? Que comunhão há entre Cristo e Belial? Pois Ele habita nos santos e habita naqueles que O amam, mas se afasta do impuro e do sujo. Expulsa as feras! Caça as raposas e desvia os pássaros! Liberta teu coração da impureza, para que o Filho do homem encontre um lugar para reclinar a cabeça, pois a Palavra de Deus se encarnou e se tornou homem! (…)” (p. 261).
Que nos tornemos a morada de Cristo, a morada em que Ele possa reclinar a cabeça, não é certamente vantagem alguma para este Deus que é o Criador e dono de todas as moradas terrenas e celestes. Trata-se da nossa conversão, da felicidade do homem, da alegria de viver com este hóspede que igualmente o nosso anfitrião: “Portanto, purifiquemo-nos de toda mancha da carne e do espírito. Vamos levar à morte aqueles membros que estão sobre a terra. Vamos fechar a entrada aos espíritos impuros. Não deixeis que os pássaros réprobos e perversos se alojem entre nós. Que nosso coração seja santo e não poluído, tanto quanto é possível e puder ser. Assim seguiremos a Cristo, conforme a graça que Ele nos dá, e Ele habitará alegremente em nós. Ele terá, então, onde reclinar a cabeça e descansará em nós como nos santos, porque está escrito: ‘Tornai-vos santos, porque Eu sou santo’, 1Pd 1, 16. E devotando-nos a estes sinceros propósitos, chegaremos também à cidade que está no alto, com a ajuda do mesmo Cristo” (p. 261).
A figura da raposa aparece em múltiplas passagens bíblicas e não somente nas mencionadas aqui. É verdade que é uma figura igualmente popular nas lendas e mitologias antigas de distintos povos. A novidade de Jesus está em mostrá-la dentro de nós e, ao mesmo tempo, não nos condenar por isso. Ao contrário, a salvação que nos propõe é habitar em nós, como de fato é a missão do Verbo. Mas, tão profundamente em nós, de modo que as nossas intenções sejam as Suas intenções. Isto quer dizer que não pode haver astúcia no coração do homem que segue Jesus Cristo.
Carlos Frederico Calvet