Alcuíno de York: as vestes brancas

De família inglesa, Alcuíno, nasceu em York, em 735, e morreu em Tours, em 804. Foi monge beneditino e formou-se na famosa escola de York. A convite de Carlos Magno constitui-se em seu orientador e mestre palatino, reformando o processo educativo medieval e fundando as escolas palatinas. Autor de múltiplas obras de filosofia, teologia, exegese, hoje seguimos algumas passagens de seu Comentário ao Apocalipse. Trata-se de seu comentário ao capítulo 7 deste último livro das Escrituras.

Dentro da mais profunda tradição cristã patrística, Alcuíno lê o Apocalipese com um olhar pascal. Fala do Cristo como um anjo, tomando o sentido do termo grego ‘angelos’, o anunciador, isto é o que anuncia a vida nova da Ressurreição: “Eu, João, vi um outro anjo, que subia do lado onde nasce o sol. Ele trazia a marca do Deus vivo e gritava, em alta voz, aos quatro anjos que tinham recebido o poder de danificar a terra e o mar, dizendo-lhes: ‘Não façais mal à terra, nem ao mar, nem às árvores, até que tenhamos marcado na fronte os servos do nosso Deus’ (v. 2-3). Cristo é um anjo porque sabemos que ele anunciou ao mundo as alegrias da nova vida, e sobre quem se disse: ‘anjo do Grande Conselho’.

A ascensão do sol aqui é a da própria Ressurreição, que nasceu como um novo sol, cresceu e encheu o mundo inteiro, e iluminou-o com o ensinamento evangélico. Com aquela voz aquele anjo também evitou que o poder nocivo dos quatro anjos causasse danos, e destruiu-os tanto nos iniciadores quanto nos subordinados ao mesmo tempo. Nabucodonosor também viu uma pedra cortada de uma montanha sem mãos golpear a referida estátua em seus pés de ferro e quebrá-la em pedaços. Por esta pedra é representado o Senhor Jesus Cristo, gerado de linhagem judaica sem ato conjugal, que golpeou a estátua nos pés e a fez cair, porque chegou ao extremo do reino dos romanos com a pregação da Palavra, e converteu os referidos reinos do mundo para reconstruí-los saudavelmente” (Alcuíno. ‘Alcuin of York Commentary on Revelation: Commentary and the Questions and Answers Manual’, por Sarah Van Der Pas. CreateSpace Independent Publishing Platform, 2016, capítulo 7, tradução do autor).

Alcuíno explica a simbologia dos números citados no versículo que se segue. “Ouvi, então, o número dos que tinham sido marcados: eram 144 mil, de todas as tribos dos filhos de Israel” (v. 4). É um número definido substituído por um número indefinido, e não se refere apenas às 12 tribos de Israel, mas a toda a Igreja, que, nos eleitos, é representada por ele. Na verdade, o número três é um número perfeito na Sagrada Escritura, especialmente porque representa a Trindade; o mesmo para o número quatro por causa das quatro partes do mundo, dos quatro Evangelhos, ou das quatro virtudes cardeais: se multiplicarmos estas umas pelas outras, chegaremos ao número 12, que também é santificado por causa das 12 tribos ou dos 12 apóstolos. Quanto ao número mil, representa a totalidade, segundo o que se diz: ‘até mil gerações’. Portanto, visto que a Igreja é reunida de todas as nações pelo conhecimento da Trindade e alimentada pelos quatro livros dos Evangelhos, é apropriado ser simbolizada por 12 mil. Porém, para que se aperfeiçoe naquilo em que acreditou, o número 12 mil precisa estar unido pela solidez do cubo: portanto, multiplique-se 12 mil por quatro, e teremos 48 mil; então, para que se alcance aquilo em que se acreditou, que é a contemplação da Trindade, multiplique-se 48 mil por três, e teremos 144 mil.”

A imensa multidão que é a Igreja unida sob o sangue do Cordeiro e sua Páscoa, por isso todos vestem sua veste branca, que é a veste do Senhor: “‘Depois disso, vi uma multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e línguas, e que ninguém podia contar. Estavam de pé diante do trono e do Cordeiro; trajavam vestes brancas e traziam palmas na mão’ (v. 9). Aqui é claramente revelado que o número mencionado não consiste apenas de judeus, mas de todos os eleitos; pois são as mesmas pessoas indicadas pela multidão incontável e pelos 144 mil assinalados. Esta multidão não é incontável para Deus, mas para nós; pois ele mesmo disse: ‘Eu os contarei, e eles se multiplicarão acima da areia’.

‘Em pé diante do trono’: embora a multidão incontável seja em si o trono de Deus, diz-se que ela está diante do trono, porque a visão muda à medida que é obscurecida pelos símbolos, embora a coisa representada pelos símbolos não mude em nada. Mas significa alguma coisa o fato de se dizer que esta multidão está de pé, enquanto a mesma foi descrita acima como sentada com os antigos ao redor do trono? É evidente que o faz: está sentada quando examina os atos dos outros através de alguns dos seus membros, e está de pé quando fortalece o seu coração na solidez da fé e do amor em todos os seus eleitos. E, ‘à vista do Cordeiro, vestido de vestes brancas’. Que se representa com as vestes brancas senão sua disposição mental? Estas vestes, contudo, não eram brancas antes da vinda do Senhor, porque os corações da humanidade estavam salpicados com as manchas do pecado original. ‘E palmas nas mãos’: pelas palmas representa-se a vitória; e pelas mãos, o trabalho. Portanto, ter as palmas nas mãos significa triunfar sobre o velho inimigo e os prazeres do mundo”.

Daí, o louvor ao Salvador: “‘Todos proclamavam com voz forte: – A salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao Cordeiro’ (v. 10). Entendemos aqui não um grito do corpo, mas do coração: esta grande voz é um grande sentimento de devoção, porque choramos mais com a nossa voz quanto mais amamos a Deus. Salvação ao nosso Deus, que está assentado no trono, e ao Cordeiro”.

Mais uma vez, Alcuíno insiste com a figura da Igreja, representada nos versículos que se seguem por múltiplos símbolos: “‘Todos os anjos estavam de pé, em volta do trono e dos Anciãos e dos quatro Seres vivos e prostravam-se, com o rosto por terra, diante o trono’ (v. 11). Os anjos, assim como o trono e os antigos, e também as criaturas vivas, simbolizam a Igreja. Portanto, simbolizam a mesma coisa de várias maneiras: pois, visto que somente Cristo reina e julga na Igreja, é correto que todos os santos sejam simbolizados por um trono; visto que a própria Igreja também examina os atos dos outros, é apropriado que ela seja simbolizada pelos antigos.

E como está aderindo às pastagens verdejantes do paraíso, ainda apenas pela fé em alguns de seus membros, e já desfrutando delas pela vista em alguns outros membros, é certo que seja simbolizada por animais. Então, uma vez que anuncia todas as coisas que estão por vir em sua pregação, convém que seja simbolizada por anjos; e como é proveniente de várias nações, é certo que seja simbolizada por uma multidão. Então eles caíram de cara diante do trono, isto é, no segredo de suas mentes, onde o juiz interior se senta. E adoraram, dizendo: ‘Amém. Bênçãos e glória e sabedoria e ações de graças e honra e poder e força ao nosso Deus para todo o sempre’. Todas estas coisas correspondem bem à Trindade”.

As vestes dos fiéis, impregnadas de sangue, isto é, de sofrimento, de tribulações, são lavadas no sangue do Cordeiro, Jesus Cristo, e tornam-se alvas, cor da sua Ressurreição. Aqui está todo o mistério da vida cristã, do qual participamos pela liturgia, onde as vestes brancas dos ministros transformam-nos em outros cristos ressuscitados: “‘E um dos Anciãos falou comigo e perguntou: – Quem são esses vestidos com roupas brancas? De onde vieram?’ (v. 13-14). Como nenhuma pergunta precedeu, o que significa quando se diz que um dos antigos respondeu? É um hábito da Sagrada Escritura usar este verbo assim, mas ele não parece ter nenhum significado, portanto, a ignorância dele não é prejudicial nem o conhecimento dele é louvável.

Assim, por este ancião entendemos a unidade dos pregadores de ambos os Testamentos, ou aquele que é mais antigo que os antigos, que é o Senhor Jesus Cristo, que interroga João para que este pergunte e, depois de perguntar, ouça, compreenda e desperte para imitar. Pelas vestes brancas entendemos tanto a pureza da mente como a glória que lhes será concedida no futuro. (…) E lavaram suas vestes e as branquearam no sangue do Cordeiro. Todos os eleitos embranquecem as suas vestes no sangue do Cordeiro, ou seja, embelezam a sua disposição mental nos sofrimentos de Cristo e a preparam para receber as alegrias futuras”.

As vestes brancas são as investiduras cristãs, isto é, são um sinal sacramental. Por isso os ministros e ministrantes vestem-se de branco, mais especificamente vestem uma túnica branca, também chamada de ‘alva’, nome de origem latina para indicar esta cor. Os cristãos, ainda hoje, lavam suas dores no sangue do Cordeiro e, ainda hoje, despertam com o alvorecer de suas vestes.

 

Carlos Frederico Calvet da Silveira

Professor da Universidade Católica de Petrópolis e do Seminário de São José, Rio

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