Impressões do magistério
Ao referir à relação da Igreja Católica com o Cinema Moderno, imediatamente se recordará a encíclica, de 1936, Vigilanti Cura, do Papa Pio XI, que marca a primeira menção do magistério eclesiástico à questão.
Com Vigilanti Cura, o primeiro passo estabelecido nessa relação não parecia cobrir a questão do cinema na inteireza da sua complexidade, na verdade, se estavam levando em conta primordialmente aspectos ligados ao conteúdo moral das obras e a legitimação dos órgãos encarregados da censura e classificação dos filmes, especialmente centrado no cinema norte-americano.
Já com o Concílio Vaticano II, a perspectiva irá se transformar e tornar mais cauta ao cinema em uma concepção mais positiva e atenta ao fenômeno na sua totalidade. Será no Decreto Inter Mirifica sobre os meios de comunicação social de novembro de 1963 que chegaremos a uma sentença e a um apelo de atenção ao fenômeno:
Como não convém absolutamente aos filhos da Igreja suportar insensivelmente que a doutrina da salvação seja obstruída e impedida por dificuldades técnicas ou por gastos, certamente volumosos, que são próprios destes meios, este sagrado Concílio chama a atenção para a obrigação de sustentar e auxiliar os diários católicos, as revistas e iniciativas cinematográficas, as estações e transmissões radiofônicas e televisivas, cujo fim principal é divulgar e defender a verdade, e prover à formação cristã da sociedade humana. (Inter Mirfica 17)
E ainda mais adiante:
Todavia, como a eficácia do apostolado em toda a nação requer unidade de propósitos e de esforços, este sagrado Concílio estabelece e manda que em toda a parte se constituam e se apoiem, por todos os meios, secretariados nacionais para os problemas da imprensa, do cinema, da rádio e da televisão. A missão destes secretariados será de velar porque a consciência dos fiéis se forme rectamente sobre o uso destes meios e estimular e organizar tudo o que os católicos realizem neste campo. (Inter Mirifica 21)
Seria interessante procurar compreender a evolução da relação eclesial em seu modus pós-conciliar na mesma esteira em que se avançou na compreensão dos diversos temas de relevância social durante este período. Parece haver uma saída de um relativo pessimismo e até de uma pré indisposição para um otimismo receptivo, e por vezes ingênuo.
A crítica católica
Em 1964, o diretor italiano Pier Paolo Pasolini, um reconhecido marxista, surpreendeu ao empreender um longa-metragem sobre a vida de Jesus Cristo a partir da narrativa do Evangelho de São Mateus. Surpreende ainda mais no prólogo da película a dedicatória da obra ao Papa João XXIII.
É certo que o Concílio institucionalizou uma prática já comum nos meios de ação do laicato, que organizavam com periodicidade grupos de análise fílmica que apesar de em seus primórdios padecerem dos mesmos objetivos de resguardar a moral e contribuir com a censura, com o passar dos anos transferiram a finalidade para a primazia da crítica e da análise artística cada vez mais apurada.
Como em outros momentos da história, o clero italiano dos anos 1960, especialmente os jesuítas, parecia muito mais aberto a compreender e apreciar o mundo em transformação do que muitos setores reacionários do laicato, que contavam com o patrocínio desta mesma hierarquia, talvez mais motivados pela prudência, senso institucional e da manutenção do status quo do que pela convicção pessoal. Pasolini ao enfrentar dificuldades para o lançamento de sua adaptação do Evangelho encontrou o patrocínio do ultraconservador Cardeal Siri de Gênova, como relata Luis Antonio Vadico:
Quando pediu apoio financeiro do grupo ‘Pro civitate Christiana’, seu diretor procurou o conselho do poderoso e conservador arcebispo de Gênova, Giussepe Siri que, surpreendentemente, encorajou-o a promover o projeto de Pasolini. (Vadico, 2016).
Talvez não seja tão difícil intuir o porquê de uma ação como essa. Seria reducionista pensar que o clero, especialmente o alto clero, que contava com uma privilegiada formação intelectual, fosse se fechar a uma evidente obra-prima como a de Pasolini por mero capricho ideológico. Ainda que neste período não se pudesse dar o devido reconhecimento oficial e público por parte das altas esferas eclesiásticas, este não tardaria a vir.
No mesmo período em que estava ocorrendo toda esta efervescência nos ambientes culturais e também da produção de cinema, estava sendo gerado no seio dos jesuítas aquele que se tornaria futuramente o crítico mais longínquo do caderno de cinema do L’Osservatore Romano, o padre Virgilio Fantuzzi, S.J., que, futuramente, seria responsável por conceder o reconhecimento e a cidadania a Pasolini e a outros autores na mais alta redação da cristandade.
Fantuzzi aos 27 anos, ainda seminarista, teve seu primeiro encontro com Pasolini. Em entrevistas o jesuíta recordava que desde a primeira ocasião em que assistiu O Evangelho segundo Mateus, notava a ocorrência de uma contradição: não poderia um homem não reconhecer a filiação divina de Jesus Cristo e, ao mesmo tempo, exacerbar na tela tanta “emoção religiosa”.
Durante la conferenza stampa alla Mostra del cinema di Venezia, rispondendo alla domanda diretta di un giornalista, Pasolini aveva affermato di non credere che Gesù fosse il Figlio di Dio. Ecco, per me questa affermazione non poteva andare d’accordo con il film che avevo visto. C’era una contraddizione insanabile tra l’emozione (religiosa, oltre che estetica) suscitata dal Vangelo secondo Matteo e quell’affermazione del regista. Ero giovane, lo ripeto, e molto zelante. Più che altro, volevo capire. (Fantuzzi, 2015)
Fantuzzi é um dos que advoga sobre a hipótese de um Pasolini crente ainda que nunca tenha se pronunciado sobre isso explicitamente, mas pelo contrário, se manifestado sempre nesta temática como convicto agnóstico. Mas este fato revela mais sobre Fantuzzi do que sobre Pasolini. Durante os anos em que esteve a cargo do caderno de cinema do L’Observatore Romano, Fantuzi dedicou-se a vasculhar e encontrar o transcendente metafísico onde poucos poderiam achá-lo, sem que para isso fizesse malabarismos e conjecturações disparatadas.
Os artigos de Fantuzzi ajudavam a ver Deus que está secreto, mas ao mesmo tempo evidente na arte. Pelos seus textos e colaborações se pode constatar o Deus de Fellini, de Bergman, de Rosellini, de Kieslowśki e de tantos mais que por muito aparecem sob o véu da subjetividade autoral e pedem o incentivo da tradução.
Epílogo
No Brasil, as organizações da Ação Católica que se dedicavam ao estudo crítico das obras cinematográficas se desenvolveram ao ponto de gerar um fenômeno conhecido como cineclubismo. Se poderia considerar o projeto Igreja em relação ao cinema em três frentes, levando em consideração o método clássico da Ação Católica:
- Havia uma ação ampla, de censura e classificação, baseada na consideração dos efeitos negativos do cinema como meio de comunicação de massas e concorrente da Igreja; 2. Havia um direcionamento para ações restritas (no sentido não massivo ou para grupos limitados), baseado na consideração dos efeitos positivos do cinema como meio de formação/educação, de caráter artístico e cultural; e 3. Para contornar a má influência do cinema ou para aproveitar as suas potencialidades, era necessária uma educação do público. E, para que essa educação se efetivasse, era necessária a competência dos seus agentes-mediadores: as ações de censura e classificação demandavam uma competência para ver e julgar por parte dos que compunham o grupo censor; do mesmo modo, para que as ações de formação fossem implementadas, era necessária uma determinada “habilitação” dos que atuariam como educadores. (Silveira e Santos, 2015)
Deve ser mencionado no contexto da relação Igreja/Cinema e também no contexto da própria história da crítica cinematográfica no Brasil o caderno de cinema da revista A Ordem do Centro Dom Vital, que por anos contou com a colaboração do acadêmico Otávio de Farias, o primeiro a aventurar-se no Brasil em uma história e teoria do cinema.
O caderno de cinema da revista A Ordem antecipou em algumas décadas um interesse que se tornaria frequente nos cineclubes da Ação Católica apenas nos anos 1940 e 1950. A capacidade firme de análise de Otávio de Farias fez com que conseguisse analisar de forma contundente os grandes movimentos de um cinema ainda embrionário. Mas isto já é assunto para uma outra edição.
Filipe F. Machado
PUBLICADO ORIGINALMENTE EM SCENA CRÍTICA
Bibliografia:
– DECRETO INTER MIRIFICA. Documentos do Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997.
– VADICO, Antonio. O campo do filme religioso: Cinema, religião e sociedade. São Paulo: Paco Editorial, 2016.
– FANTUZZI, Virgilio. Fantuzzi: Pasolini, regista del sacro. Alessandro Zaccuri. Avvenire, Itália, 29/10/2015. Disponível em: <https://www.avvenire.it/agora/pagine/pasolini-regista-del-sacro>. Acesso em 9/03/2023.
– GUSMÃO, M.; SANTOS, R. Cinema e católicos no Brasil: entre a ação pastoral-religiosa e a ação cultural-educacional. Alceu, Rio de Janeiro, v. 15, n. 30, p. 146-167, jan./jun. 2015.