Agostinho: mudai nossa sorte, ó Senhor!

O Salmo 125 é uma lamentação que é transformada em ação de graças, proferida por aqueles que foram libertados do cativeiro. O salmo compara essa mudança na situação humana com a semeadura e a colheita ‘Os que lançam as sementes entre lágrimas, ceifarão com alegria’, Sl 125, 5. No domingo em que o Evangelho de Marcos narra a cura de um cego, confessamos por meio deste salmo histórico que Jesus pode mudar a nossa sorte.

Agostinho recorre a Paulo para explicar por que o homem sofre: “Interroguemos ao apóstolo Paulo como foi que o homem caiu em cativeiro. Efetivamente, Paulo geme de modo especial neste cativeiro, suspirando pela eterna Jerusalém; e ensinou-nos a gemer por intermédio do mesmo Espírito de que ele estava repleto e que o fazia gemer. Pois, assim se exprime: ‘A criação inteira geme e sofre até o presente’. E ainda: ‘De fato, a criação foi submetida à vaidade, não por seu querer, mas por vontade daquele que a submeteu, na esperança’. Afirma que toda a criação, mesmo nos homens que ainda não creem, mas haverão de crer, toda a criação geme em dores. Acaso somente naqueles que ainda não acreditaram? E naqueles que creram não geme, a criatura em dores de parto? ‘E não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito’, isto é, que já servimos a Deus em espírito, que já acreditamos pela mente em Deus, e apresentamos na fé certas primícias, pois havemos de seguir nossas primícias; portanto, ‘também nós, gememos interiormente, suspirando pela adoção, pela redenção de nosso corpo’. Gemia, portanto, ele, e gemem todos os fiéis, esperando a adoção, a redenção de seu corpo. Onde gemem? Nesta vida mortal. Qual a redenção que esperam? A de seu corpo, que precedeu no Senhor, o qual ressuscitou dos mortos e subiu ao céu. Antes que isto nos seja concedido, faz-se mister que gemamos, mesmo que sejamos fiéis, mesmo que esperemos”. (Agostinho. ‘Comentário aos Salmos’: Salmos 101-150. São Paulo: Paulus, 1998, p. 355).

Contudo, o Senhor libertou o povo de Israel como liberta hoje seu povo: ‘Quando reconduziu o Senhor os repatriados de Sião, ficamos como que consolados’.  Queria dizer: Ficamos alegres. Quando? ‘Quando reconduziu o Senhor os repatriados de Sião’. Qual Sião? A própria Jerusalém, a Sião eterna. Como Sião é eterna, e como é cativa Sião? Nos anjos, ela é eterna, nos homens é cativa. Pois, nem todos os cidadãos daquela cidade são cativos; mas os que estão fora dela são cativos. O homem é cidadão de Jerusalém, mas vendido como escravo ao pecado, tornou-se peregrino. De sua descendência nasceu o gênero humano e encheu as terras do cativeiro de Sião. E este cativeiro de Sião como é sombra daquela Jerusalém? É sombra daquela, Sião que os judeus receberam como imagem, e que foi figurada no cativeiro de Babilônia; depois de setenta anos, o povo voltou à sua cidade (cf Jr 25,11; 29,10; 1Esd 1,1ss). Setenta anos significam todo o tempo que decorre num ciclo de sete dias. Quando tiver passado todo o tempo, então voltaremos também nós a nossa pátria, assim como aquele povo depois de setenta anos voltou do cativeiro de Babilônia” (p. 356-357).

Em outras palavras, o Senhor mudou nossa sorte e por isso ficamos consolados: “‘Ficamos como que consolados’, isto é, alegramo-nos, como que recebendo um consolo. Precisam de consolo apenas os infelizes, os que gemem, os que choram. Por que ‘como consolados’ senão por que ainda gememos? Gememos na realidade, somos consolados em esperança. Quando os acontecimentos passarem, passar-se-á do gemido à alegria eterna, quando não será mais necessário consolo algum, porque não seremos atacados por nenhuma infelicidade. (…) Por conseguinte, como estes estavam verdadeiramente consolados, alegravam-se ‘como que consolados’, isto é, grande era sua alegria, como a dos consolados. Consolava os que haviam de morrer aquele que morreu. Pois todos nós morremos gemendo; consolou-nos aquele que morreu para não temermos a morte. Foi o primeiro a ressuscitar a fim de termos o que esperar. Tendo sido o primeiro a ressuscitar, trouxe-nos a esperança. Estávamos na miséria e fomos consolados com a esperança; daí provém a maior alegria. E como o Senhor reconduziu nossos repatriados, já temos um caminho de regresso do cativeiro, em direção à pátria. Já redimidos, portanto, não temamos os nossos inimigos que nos armam ciladas no caminho. O Senhor nos remiu a fim de que o inimigo não ouse nos armar ciladas, se não nos desviarmos do caminho. Pois, o próprio Cristo se fez o caminho (cf Jo 14,6)” (p. 358).

Quando sabemos que fomos consolados? Quando somos capazes de louvar a Deus com o coração puro. “‘Encheu-se de risos a nossa boca e a nossa língua de cantos de alegria’. Como se enche de risos, meus irmãos, a boca que temos no corpo? Não costuma encher-se senão de alimento, bebida, ou qualquer outra coisa que lá metermos. Enche-se por vezes a nossa boca; e dizemos mais a V. Santidade: quando temos a boca cheia não podemos falar. Temos, porém, interiormente uma boca, isto é, no coração, de onde tudo o que procede; se é mal, mancha-nos, se é bom, nos purifica. Ouviste falar a respeito dessa boca, quando era lido o evangelho. Os judeus atacavam o Senhor, porque seus discípulos comiam sem lavar as mãos (cf. Mt 15,1). Eles insultavam; tinham a pureza exterior, mas interiormente estavam cheios de manchas; os que tinham a justiça apenas aos olhos dos homens insultavam. O Senhor, porém, procurava a nossa pureza interior; se ela existir, necessariamente o que está no exterior será puro. ‘Limpa primeiro o interior do copo para que também o exterior fique limpo’ (Mt 23,26). O mesmo Senhor diz em outra passagem: ‘Antes, dai o que tendes em esmola e tudo ficará puro para vós’ (Lc 11,41). De onde, porém, procede a esmola? Do coração. Se estendes a mão, mas não te compadeces de coração, nada fizeste; se, porém, te compadeces de coração, mesmo que não tenhas o que oferecer, Deus aceita a tua esmola” (p. 358).

Podemos ler a mensagem bíblica de modo meramente literal ou podemos fazê-lo de modo espiritual. Este segundo modo é aquele que nos diz respeito: “Mas voltemos ao ponto que acaba de ser lido no evangelho, e que tem relação com o presente versículo: ‘Encheu-se então de risos a nossa boca e a nossa língua de cantos de alegria’. Perguntamo-nos que boca e que língua. V. Caridade esteja atenta. Atacaram o Senhor, porque seus discípulos comiam sem lavar as mãos. O Senhor lhes respondeu como era conveniente, e tendo chamado as turbas, disse: ‘Ouvi-me todos e entendei! Nada há no exterior do homem que, penetrando na boca, o possa tornar impuro, e sim o que sai do homem’ (cf. Mt 15,1-20; Mc 7,5-23). Que significa isto? Tendo dito o evangelista: ‘O que entra pela boca’, designa a boca que está no corpo. Pois entram os alimentos, e os alimentos não mancham o homem, visto que “para os puros, todas as coisas são puras” (Tt 1,15). E: ‘Tudo o que Deus criou é bom, e nada é desprezível, se tomado com ação de graças’ (1Tm 4,4). Entre os judeus havia certas coisas que eram ditas impuras, figuradamente (cf. Lv 11,4ss). Mas depois que veio a luz, as sombras se dissiparam. Não estamos presos à letra, mas somos vivificados pelo espírito; e não é imposto aos cristãos o jugo da observância, que era imposto aos judeus; pois o Senhor disse: ‘O meu jugo é suave e o meu fardo é leve’ (Mt 11,30). E diz o Apóstolo: ‘Para os puros, todas as coisas são puras; mas para os impuros e descrentes, nada é puro; tanto a mente como a consciência deles estão corrompidas’ (Tt 1,15)” (p. 359).

A consolação de Cristo é definitiva. É isto que Agostinho nos ensina com este salmo. Primeiramente, ele muda a nossa sorte e, em seguida, assume-nos em seu amor. Por isso, o salmo de lamento torna-se igualmente um salmo de louvor. Esta mudança de vida está presente também na mudança da sorte do cego do evangelho de Marcos. A sorte do homem foi realmente mudada com a vinda de Cristo e, por meio dele, a vinda do Espírito Santo, que é adequadamente chamado de Consolador.

 

Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO 

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