O amor humano e divino do Coração de Jesus (II)

A nova Encíclica do Papa Francisco sobre o Sagrado Coração de Jesus, em seu amor humano e divino por nós, trata, no Capítulo 2, dos gestos e palavras de amor à luz da Sagrada Escritura. Percorramo-lo.

O Papa afirma que “o Coração de Cristo, que simboliza o centro pessoal de onde brota o seu amor por nós, é o núcleo vivo do primeiro anúncio. Ali se encontra a origem da nossa fé, a fonte que mantém vivas as convicções cristãs” (n. 32)”. Eis porque importa conhecer os gestos que bem refletem o coração. Sim, gestos, pois mais do que teorizar sobre o amor, Ele demonstrou, com o seu exemplo, até a morte de Cruz, o que é, de fato, amar. “O modo como nos ama é algo que Cristo não quis explicar-nos exaustivamente. Mostra-o nos seus gestos. Observando-O, podemos descobrir como trata cada um de nós, mesmo que nos custe perceber isso. Procuremos, pois, onde a nossa fé pode reconhecê-Lo: no Evangelho” (n. 33). Ora, irmão e irmã, o Evangelho assevera que Ele veio para os que eram seus (cf. Jo 1,11), isto é, a cada um de nós, que já não somos seus “servos”, mas “amigos” (Jo 15,15). Ele é o Deus-conosco, Emanuel, que, em sua kénosis, esvaziou-se de si mesmo e tomou a condição de servo ou de escravo, conforme a tradução do texto bíblico que for utilizada (cf. Fl 2,7).

Textualmente, reflete o Santo Padre: “Isto [o fato da proximidade nos gestos – Nota minha] se torna evidente quando vemos o modo como age. Está sempre à procura, sempre próximo, sempre aberto ao encontro. Contemplamos isto quando se detém a conversar com a Samaritana, junto do poço onde ela ia buscar água (cf. Jo 4,5-7). Vemo-lo quando, no meio da noite escura, encontra Nicodemos, que tinha medo de ser visto perto d’Ele (cf. Jo 3,1-2). Admiramo-lo quando, sem se envergonhar, deixa que uma prostituta lhe lave os pés (cf. Lc 7,36-50); quando diz, olhos nos olhos, à mulher adúltera: ‘Não te condeno’ (Jo 8,11); ou quando, perante a indiferença dos discípulos, diz afetuosamente ao cego do caminho: ‘Que queres que te faça?’ (Mc 10,51). Cristo mostra que Deus é proximidade, compaixão e ternura” (n. 35). E o Papa prossegue: “Se curava alguém, preferia aproximar-se: ‘Jesus estendeu a mão e tocou-o’ (Mt 8,3); ‘tocou-lhe na mão’ (Mt 8,15); ‘tocou-lhes nos olhos’ (Mt 9,29). E, como faz uma mãe, curou os doentes até com a própria saliva (cf. Mc 7,33) para que não O sentissem como alheio às suas vidas. Porque ‘o Senhor conhece a bela ciência das carícias. A ternura de Deus não nos ama com palavras; aproxima-se de nós e, estando perto, dá-nos o seu amor com toda a ternura possível’ (Francisco, Homilia na missa matutina de Santa Marta (7 de junho de 2013): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português, de 9 de junho de 2013), 6)” (n. 36).

Persistindo sobre os gestos acolhedores do Senhor, em seu coração humano e divino, Francisco, de modo muito alentador, assegura: “Visto que nos custa confiar, porque fomos feridos por tantas falsidades, agressões e desilusões, ele sussurra-nos ao ouvido: ‘Filho, tem confiança’ (Mt 9,2); ‘Filha, tem confiança’ (Mt 9,22). Trata-se de vencer o medo e de tomar consciência de que, com Ele, não temos nada a perder. A Pedro, que estava desconfiado, ‘Jesus estendeu-lhe a mão, segurou-o e disse-lhe: […] ‘Porque duvidaste?’ (Mt 14,31). Não tenhas medo. Deixa-O aproximar-se e sentar-se ao teu lado. Podemos duvidar de muitas pessoas, mas não d’Ele. E não te paralises por causa dos teus pecados. Recorda-te que muitos pecadores ‘sentaram-se com Ele’ (Mt 9,10), e Jesus não se escandalizou com nenhum deles. Os elitistas da religião queixavam-se e chamavam-Lhe de ‘glutão e bebedor de vinho, amigo de cobradores de impostos e pecadores’ (Mt 11,19). Quando os fariseus criticavam esta sua proximidade com as pessoas consideradas humildes ou pecadoras, Jesus dizia-lhes: ‘Prefiro a misericórdia ao sacrifício’ (Mt 9,13)” (n. 37). Como, apesar de nossos pecados, não nos voltarmos confiantes a Ele, que não nos deixou órfãos com sua partida, mas está sempre conosco (cf. Jo 14,18-19)?

O Santo Padre não deixa de se debruçar também sobre o olhar de Jesus. O modo como Ele se volta para o próximo necessitado de misericórdia. Deste modo, fita os olhos com atenção no jovem rico que o procura (cf. Mc 10,21), com um olhar penetrante, mas não julgador, chama os dois irmãos que se encontravam à margem do Mar da Galileia (cf. Mt 4,18.21). Ainda: “‘Contemplando a multidão, encheu-se de compaixão por ela, pois estava cansada e abatida’ (Mt 9,36)”. A Natanael, que se achava só e cheio de si, disse: “Antes de Filipe te chamar, Eu vi-te quando estavas debaixo da figueira!” (Jo 1,48); “‘Viu também uma viúva pobre depositar [no cofre do tesouro do templo] duas moedinhas’ (Lc 21,2)”. E: “Quando o centurião Lhe suplicou com toda a confiança, ‘Jesus, ao ouvi-lo, admirou-se’ (Mt 8,10)” (cf. n. 39-41). Tudo isto, porque “enquanto ser humano, tinha aprendido isto de Maria, sua mãe. Ela, que tudo contemplava com cuidado e ‘guardava tudo no seu coração’ (Lc 2,19.51), ensinou-O, desde muito cedo, na companhia de São José, a prestar atenção” (n. 42).

A palavra, nos gestos de Jesus, é também para o Santo Padre algo a ser meditado. Quando Ele nos chama a si, chama-nos para o Seu Coração. Por isso, diz: “‘Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei de aliviar-vos’ (Mt 11,28)”. Também pede aos seus discípulos: “Permanecei em mim” (Jo 15,4). Ele sofre com os que sofrem, não lhes é indiferente, como se nota em Mc 8,2-3: “Tenho compaixão desta multidão […] Não têm nada para comer […] desfalecerão no caminho, e alguns vieram de longe”. Padece também por Jerusalém (cf. Lc 19,41-42), chora a morte de Lázaro, seu amigo (cf. Jo 11,35), cujas irmãs também muito prezava (cf. Jo 11,5), e, ao vê-las chorar pelo irmão morto, suspirou profundamente e comoveu-se (cf. Jo 11,33), ver: n. 43-44. “Por fim, a angústia de Jesus perante a sua própria morte violenta, às mãos daqueles que tanto amava, também não ficou escondida: ‘começou a sentir pavor e a angustiar-se’ (Mc 14,33), a ponto de dizer: ‘A minha alma está numa tristeza mortal’ (Mc 14,34). Esta perturbação interior exprime-se com toda a sua força no grito do Crucificado: ‘Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?’ (Mc 15,34)” (n. 45).

E o Santo Padre, no penúltimo parágrafo, assim conclui o Capítulo 2: “Tudo isto, à primeira vista, pode parecer um mero romanticismo religioso. No entanto, é o que há de mais sério e mais decisivo. Encontra a sua expressão máxima em Cristo pregado numa Cruz. Essa é a palavra de amor mais eloquente. Não se trata de algo superficial, não é puro sentimento, não é uma alienação espiritual. É amor. Por isso, quando São Paulo procurava as palavras certas para explicar a sua relação com Cristo, disse: ‘amou-me e a Si mesmo se entregou por mim’ (Gl 2,20). Esta era a sua maior convicção: saber-se amado. A entrega de Cristo na cruz subjugava-o, mas só fazia sentido porque havia algo ainda maior do que essa entrega: ‘Amou-me’. Quando muitas pessoas procuravam em várias propostas religiosas salvação, bem-estar ou segurança, Paulo, tocado pelo Espírito, soube olhar além e maravilhar-se com o que há de maior e mais fundamental: ‘Amou-me’” (n. 46).

“Amou-me”… Que gesto mais terno! Saber-se amado por um ser humano, muito próximo de nós, já é um grande consolo. Afinal, o ser humano foi criado à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1,27) para amar a Deus e ao próximo como a si mesmo (cf. Mt 22,37-39; ver: Dt 6,5; Lv 19,18), mas a pergunta que fica, prezado(a) leitor(a), é: Há maior consolação humana e espiritual do que poder dizer: “Sou amado(a) por Deus”? Agradeçamo-Lo por tão imenso amor e, com a Sua graça, procuremos correspondê-Lo à altura.

 

Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist.

Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ

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