Agostinho: Não serei confundido

É Advento. Muitos são os sinais da chegada do Senhor, mas os que o adoram não serão confundidos. Esta é a certeza dos fiéis, os quais, segundo Agostinho, cantam sua confiança no Senhor no Salmo 24: “‘A ti, Senhor, elevei a minha alma’, inflamada de desejo espiritual, ela que era pisoteada na terra pelos desejos carnais. ‘Meu Deus, em ti confio, não seja envergonhado’. Meu Deus, enquanto confiava em mim, fui arrastado até a fraqueza da carne. Tendo abandonado a Deus, quis ser como Deus, temendo ser morto por um animalzinho minúsculo; corei-me ao ser ridicularizado por minha soberba. Mas, já confio em ti; não me envergonharei” (Agostinho. ‘Comentário aos Salmos. Salmos 1-50’. Vol. 1. São Paulo: Paulus, 2014, p. 140).

O Senhor vem por um caminho bem delimitado, o qual, para nós, é o caminho da misericórdia: “‘Não zombem de mim, meus inimigos’. Não zombem de mim aqueles que, armando-me ciladas, astutas e ocultas sugestões e insuflando-me: Muito bem, muito bem, derrubaram-me nesse fosso. ‘Porque todos os que em ti esperam não serão confundidos’. ‘Confundidos sejam todos os obreiros de coisas vãs’. Sejam confundidos os que agem iniquamente visando a adquirir bens transitórios. ‘Mostra-me, Senhor, os teus caminhos, e ensina-me as tuas veredas’. Ensina-me as tuas veredas, que não são largas, nem levam muitos à perdição (Mt 7,13), mas são estreitas e de poucos conhecidas”. 

Precisamos desse caminho traçado pelo Senhor, pelo qual ele voltará, isto é, restaurará nossas forças: “‘Orienta-me, segundo a tua verdade’, na fuga do erro. ‘E ensina-me’. Pois, por mim mesmo só conheço a mentira. ‘Porque és o Deus, meu salvador, e sempre tenho esperado por ti’. Por ti expulso do paraíso (Gn 3,23) e havendo partido para uma região longínqua (Lc 15,13), não posso voltar por minhas próprias forças, a menos que venhas ao encontro deste desviado; minha volta esteve dependendo de tua misericórdia em todo o decurso do tempo”. 

O caminho do Senhor é suave e reto, porque ele endireita nossas transgressões com sua misericórdia: “‘O Senhor é suave e reto’. Suave é o Senhor, visto que se compadeceu dos pecadores e ímpios, perdoando-lhes todos os pecados anteriores; mas é ainda reto o Senhor que, depois da misericórdia do chamado e do perdão, gratuitos e imerecidos, exigirá no último juízo méritos convenientes. ‘Por isso estabelece uma lei para os delinquentes no caminho’, porque antes concedeu a misericórdia para reconduzir ao caminho”. 

Os humildes são conduzidos pelo Senhor: “‘Dirigirá os mansos no juízo’. Dirigirá os mansos, e não confundirá no juízo os que seguem a sua vontade, e não resistem, preferindo-lhe a sua própria. ‘Ensinará aos dóceis os seus caminhos’. Não ensinará seus caminhos àqueles que se adiantam, como se pudessem melhor governar-se a si mesmos; mas ensinará àqueles que não levantam a cerviz, nem recalcitram ao lhes ser imposto o jugo suave e o fardo leve (Mt 11,30)”. 

Mais uma vez, o salmista insiste na misericórdia de Deus, pois o Advento é tempo de revisão e de perdão. Assim, o Juiz aplica aos arrependidos sua misericórdia: “‘Todos os caminhos do Senhor são misericórdia e verdade’. Que caminhos lhes ensinará senão a misericórdia que o torna aplacável, e a verdade que o livra de suborno? Apresenta-se com a primeira, perdoando os pecados e com a segunda, julgando os méritos. Todos os caminhos do Senhor são, portanto, as duas vindas do Filho de Deus, uma como salvador misericordioso, outra como juiz. Dele, portanto, se aproxima, seguindo os seus caminhos, aquele que, ao ser libertado, sem merecimento algum de sua parte, despoja-se da soberba e de então em diante se acautela da severidade do juiz, cuja clemência e auxílio experimentou. ‘Para os que buscam sua aliança e seus testemunhos’. Entendem ter sido o Senhor misericordioso em sua primeira vinda, ele que na segunda será juiz. Mansos e dóceis buscam sua aliança, pois ele nos remiu em seu sangue para uma vida nova; e reconhecem seus testemunhos nos profetas e evangelistas”. 

Qual é o testemunho dos profetas e evangelistas? “‘Por amor de teu nome, Senhor, perdoarás o meu pecado. Ele é, de fato, muito grande’. Não apenas perdoaste meus pecados, cometidos antes que eu tivesse fé, mas ainda os meus pecados, que são muitos; porque na caminhada não faltam as ofensas a ti, perdoarás, aplacado pelo sacrifício de um espírito atribulado”. 

E quem mais é testemunha do Senhor? É aquele que segue seu caminho em todo o orbe: “‘Qual é o homem que teme o Senhor?’ Aqui está o início da sabedoria. ‘Traçou-lhe a lei no caminho que escolheu’. Estabeleceu uma lei no caminho livremente escolhido, para que não peque impunemente. ‘Sua alma descansará no meio de bens, e sua descendência possuirá a terra em herança’. Suas obras lhe obterão herança sólida de um corpo restabelecido. ‘O Senhor é o sustentáculo dos que o temem’. O temor parece ser próprio dos fracos, mas o Senhor é o sustentáculo dos que o temem. E o nome do Senhor, glorificado por todo o orbe, corrobora os que o temem. ‘Fez seu testamento, para lhes ser manifestado’. Ele faz com que seu testamento lhes seja manifestado, porque os povos e os confins da terra são a herança de Cristo”. 

Porque ‘Meus olhos se voltam sempre para o Senhor, porque ele é quem há de tirar os meus pés do laço’. Não temerei os perigos terrenos, enquanto não olhar para a terra. Aquele para quem olho é quem retirará do laço os meus pés. Eu também posso dizer: “‘Olha-me e tem compaixão de mim, porque estou só e sou pobre’. Sou o único povo que pratica a humildade de tua única Igreja, humildade que nenhum cisma ou heresia possui”. 

Mas nossas aflições não desaparecem, pois vivemos ainda na esperança que nos permite, contudo, louvar e pedir o olhar do Senhor: “‘Multiplicaram-se as aflições de meu coração’. As tribulações de meu coração, por causa da abundância da iniquidade, e diminuição da caridade, se multiplicaram. ‘Livra-me da necessidade’. Tira-me de minhas necessidades, porque me é forçoso tolerá-las, a fim de que, perseverando até o fim, seja salvo (Mt 10,22). ‘Vê minha humilhação e minha labuta’. Vê a minha humildade, que não me deixa jamais romper a unidade, gabando-se de possuir a justiça. Considera minha labuta, suportando os indisciplinados entre os quais me encontro. ‘E perdoa todos os meus pecados’. Aplacado por estes sacrifícios, perdoa-me todos os pecados, não somente os da juventude e do tempo de minha ignorância, antes de possuir a fé, mas ainda os que, já vivendo da fé, cometo por fraqueza ou cegueira durante a vida presente”. 

As tribulações vêm ainda de todos os lados. “De dentro mesmo da Igreja, diz Agostinho. Mas a resposta é sempre a mesma: ‘Vê como se multiplicaram os meus inimigos’. Não são apenas os de fora, mas também os de dentro da comunhão da Igreja, que não faltam. ‘E com que ódio iníquo me odeiam’. Odiaram-me, no entanto, eu os amo”. 

Não seremos confundidos, pois sabemos em quem pusemos nossa esperança: “‘Guarda a minha alma e livra-me’. Guarda a minha alma para que eu não me incline a imitá-los. Livra-me igualmente da perplexidade, que nos envolve. ‘Não serei confundido, porque em ti esperei’. Não serei confundido, se eles se insurgirem contra mim, porque não depositei em mim a minha confiança, mas em ti”. 

Como Jesus, nós podemos dizer: “‘Os inocentes e os retos aderiram a mim’, porque esperei em ti, Senhor. Os inocentes e os justos não estão próximos entre si corporalmente como acontece com os maus, mas aderem a mim, em concórdia, inocência e retidão, porque não falhei procurando imitar os maus, mas confiei em ti, esperando que a tua última colheita passe pela ventilação. ‘Livra, ó Deus, a Israel de todas as suas tribulações’. Ao teu povo, que preparaste para a tua visão, livra ó Deus, não só das tribulações toleradas por fora, mas também das suportadas interiormente”.

Este salmo que louva o caminho reto que o Senhor prepara para nós, é um salmo apropriado para o Advento. Tem um sentido escatológico, mas é uma também um reconhecimento da vinda atual de Cristo na sua Igreja neste momento forte da liturgia cristã.

 

Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO 

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