Orígenes: o mistério da alegria

A alegria está explicitamente citada na antífona, nas leituras e no salmo deste terceiro domingo do Advento, exceto na longa perícope do Evangelho de Lucas (3, 10-18), que é comentada por Orígenes em cinco de suas homilias (da 23 à homilia 27), as quais, por outro lado, nos fazem conhecer o mistério da alegria. Em cada uma delas ele concentra-se apenas em um ou dois versículos da passagem acima. Isto certamente indica, entre outras coisas, sua importância. João Batista parece ser o centro da narrativa, mas ele mesmo aponta para Jesus Cristo como o centro da Boa Nova.

Deste o início, Orígenes procura mostrar, consoante a tradição patrística, a ação do Espírito Santo na vida do cristão: “O povo acolheu João, que era menor que o Cristo, pensando e imaginando que ele talvez fosse o Cristo. Mas não recebeu aquele que tinha vindo e que era maior que João. Queres saber a causa? Ei-la: o povo via o batismo de João, [mas] o batismo de Cristo era invisível. ‘Pois eu, dizia João, vos batizo na água; quem vem, porém, depois de mim, é maior que eu, esse vos batizará no Espírito Santo e no fogo. Quando Jesus batiza ‘no Espírito Santo’, e quando, por outro lado, batiza ‘no fogo’? É num só e mesmo instante que ele batiza ‘no Espírito Santo e no fogo’, ou é em momentos distintos e diferentes? ‘Vós sereis batizados no Espírito Santo não daqui a muitos dias’” (Orígenes. ‘Homilias sobre o Evangelho de Lucas’. São Paulo: Paulus, 2016, p. 89ss).

Uma vez mais, a ênfase no Espírito Santo: “Os apóstolos foram batizados ‘no Espírito Santo’ depois da sua ascensão aos céus, mas a Escritura não menciona que eles tenham sido batizados ‘no fogo’. Mas do mesmo modo que João, às margens do Jordão, esperava os que vinham receber o batismo e enxotava os outros com estas palavras: ‘Raça de víboras’, e o que se segue, enquanto admitia os que confessavam seus vícios e seus pecados, assim o Senhor Jesus estará de pé no rio de fogo. Aí ele estará com a ‘espada flamejante’, de modo que quem quer que seja que, saindo desta vida, deseje passar para o paraíso e tenha necessidade de purificação, ele o batiza neste rio e o faz chegar ao lugar de seu desejo. Mas aquele que não traz o signo dos batismos anteriores, ele não o batizará no banho de fogo. Pois é necessário ser primeiramente batizado ‘na água e no Espírito’, para poder, chegando ao rio de fogo, mostrar que se conservaram as purificações ‘da água e do Espírito’ e, desde então, merecer receber também o batismo do fogo no Cristo Jesus ‘a quem pertencem a glória e o poder nos séculos dos séculos. Amém’” (p. .

O Espírito é a medida de todas as coisas: “Mesmo o amor oferece um perigo, se ultrapassa a medida. Aquele que ama alguém deve, com efeito, considerar a natureza e os motivos do amor e não amar alguém mais do que ele merece. Pois se transcender a medida e a conveniência na caridade, tanto aquele que ama quanto aquele que é amado estarão em pecado. Para que isso se torne mais claro, citemos como exemplo João.

João, o Batista, estava cheio do Espírito de Cristo, recebido no encontro de Maria com Isabel, por isso: “O povo o admirava e o amava; e certamente ele – que havia vivido de modo tão diferente de todos os mortais – era digno de admiração e de que se lhe fosse concedida mais admiração do que a outros homens. Nós todos não nos contentamos com uma comida simples, sem tempero, mas buscamos o prazer de uma alimentação variada; um único vinho para beber não nos basta, mas compramos vinhos de diferentes gostos. Mas João se alimentava sempre ‘de gafanhotos’, sempre ‘de mel silvestre’; e contentava-se com uma simples e frugal comida, para que não engordasse seu corpo com iguarias muito gordurosas nem se tornasse pesado com refeições muito refinadas. (…) Portanto, a vida de João era admirável e muito diferente do modo de vida dos outros homens. Ele não possuía nem bolsa, nem servo, nem mesmo uma miserável choupana. Ele morava no deserto, não apenas ‘até o dia de sua manifestação a Israel’, mas também naquele tempo em que pregava a conversão ao povo, estava ainda no deserto da Judeia e desalterava-se com água clara, para que fosse diferente dos outros até na escolha de sua bebida”.

É o Espírito que nos conduz para a alegria evangélica, pois somente o Espírito conhece a medida de Cristo: “Nós que vivemos nas cidades, que estamos no meio das multidões, buscamos a elegância no vestuário, na alimentação e na moradia. Mas aquele que morava no deserto, vede com qual vestimenta se vestiu: tinha feito para si uma túnica ‘com pelos de camelos’, e estava cingido ‘com um cinto de couro’. Todas as coisas, portanto, nele eram inéditas, e por causa de sua extraordinária vida, todos os que o viam se admiravam dele e, admirando-o, cultuavam-no com muita paixão em todas as coisas, porque batizava ‘para a remissão dos pecados’ os que faziam penitência. Por tudo isso, evidentemente, eles o amavam com muito bons motivos. Mas em sua caridade, não guardavam uma justa medida: cogitavam, com efeito, ‘se por acaso ele não era o Cristo’. Precavendo-se contra esse amor desordenado e não espiritual, o apóstolo Paulo dizia a respeito de si mesmo: ‘Temo, porém, que alguém faça de mim uma ideia superior ao que se vê ou se ouve de mim; e que a grandeza das revelações não me encha de orgulho’, e o que se segue. Temendo incorrer também ele próprio nesse defeito, Paulo não queria revelar de si mesmo tudo o que sabia, para que alguém não tivesse dele um julgamento superior ao que pudesse observar e que, excedendo a medida da honra, dissesse o que fora dito sobre João: ‘Que ele fosse o Cristo’”.

Nós, ao contrário, caímos na alegria do excesso, que não vem do Espírito: “Por certo, nós sofremos desse excesso em nossa Igreja: enquanto muitos amam-nos mais do que merecemos, proferem a torto e a direito essas coisas, louvando nossos discursos e nossa doutrina, julgamentos que nossa consciência não aceita. Seguramente outros caluniam nossas homilias e nos incriminam de professar opiniões que nunca soubemos ter professado. Mas nem aqueles que nos amam nos amam em excesso, nem aqueles que nos odeiam guardam a regra da verdade; e, uns através do amor, outros através do ódio, mentem”.

Precisamos, “Por isso é necessário pôr um freio também ao amor, tanto para não lhe permitir a liberdade de vagar errante quanto para que não se arruíne no despenhadeiro. Está escrito no Eclesiastes: ‘Não sejas excessivamente justo, não cogites pensamentos assaz vastos, para que não fiques talvez de boca aberta’. Seguindo esse exemplo, posso dizer algo similar: não ames um homem ‘de todo o teu coração e com toda a tua alma e com todas as tuas forças’; não ames um anjo ‘de todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças’; mas, segundo a Palavra do Senhor, reserva este preceito para Deus unicamente: ‘Tu amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, de toda a tua alma e com todas as tuas forças’”.

Qual é a resposta a essa provocação que nos faz Orígenes? Exorta-nos a um amor encarnado, isto é, que reconhece o Pai no Filho: “Quero amar também o Cristo; ensina-me, portanto, como amá-lo, pois, se o amo ‘de todo o meu coração, de toda a minha alma, com todas as minhas forças’, ajo contra o mandamento, amando assim outro diferente do único Deus. Se, ao contrário, amo o Cristo menos que o Pai todo-poderoso, temo ser identificado como ímpio e irreligioso contra ‘o primogênito de toda a criação’. Ensina-me e mostra-me a maneira como devo amar o Cristo, andando em meio aos dois extremos’. Queres saber com qual amor Cristo deve ser amado? Escuta brevemente! ‘Ama o Senhor teu Deus’ em Cristo, e não penses que tu podes ter um amor diferente, um para com o Pai, outro para com o Filho. Ama ao mesmo tempo Deus e o Cristo. Ama o Pai no Filho e o Filho no Pai, ‘de todo o teu coração, de toda a tua alma, com todas as tuas forças’”.

A alegria que vem do Espírito só foi possível chegar até nós pelo mistério da Encarnação do Filho. Trata-se de uma alegria peculiar, onde não há excessos e que é fruto do único amor entre o Pai e o Filho. Este é o mistério da alegria, do qual participamos pelos mistérios de Cristo que se encarnou em vista de nossa participação em sua vida.

 

Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO 

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