São Jerônimo nasceu em Stridon por volta do ano 340 e morreu em Belém, em 420. Doutor da Igreja e venerado, dentre outros méritos, por ter traduzido a Bíblia para o latim, a conhecida ‘Vulgata’, isto é, o latim que então era a língua do povo (vulgo). Como tradutor e intérprete das Sagradas Escrituras, Jerônimo deixou-nos múltiplos comentários sobre a Palavra de Deus. Hoje, veremos uma passagem de seu comentário aos Gálatas 6,14-18.
O Evangelho de Lucas reporta as palavras de Cristo em que, mais do que uma promessa, o Senhor dá a seus seguidores uma garantia: “Não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem. Antes, ficai alegres porque vossos nomes estão escritos no céu”, Lc 10,20. Creio que podemos reler estas palavras a partir da passagem de Gálatas, também lida neste domingo do Tempo Comum, seguida da interpretação de São Jerônimo: “‘Longe de mim o gloriar-me senão da cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim, e eu crucificado para o mundo’, Gl 6,14. A única pessoa que pode se gloriar na cruz de Cristo é aquela que toma sua cruz e segue o Salvador, Mt 16,24; que crucificou sua própria carne com seus vícios e desejos pecaminosos, Gl 5,24; que morreu para o mundo e que não fixa os olhos no que se vê, mas no que não se vê, 2Cor 4,18. Pois ele vê o mundo crucificado e sua forma atual passando, 1Cor 7,31. O mundo, então, está crucificado para o homem justo. O Salvador fala disso quando diz: ‘Eu venci o mundo’, Jo 16,33; e: ‘Não ameis o mundo’, 1Jo 2,15; e: ‘Não recebestes o espírito do mundo’, 1Cor 2,12. O mundo está crucificado para aquele para quem morreu” (Jerônimo, Commentary on Galatians. Translated by Andrew Cain. Washington: The Catholic University of America Press, 2010, p. 263-268, tradução do autor).
As regras tornam-se irrelevantes quando o espírito atinge suas razões superiores: “‘De fato, nem a circuncisão nem a incircuncisão valem nada, mas o ser uma nova criatura’, Gl 6,15. Embora o crente e o incrédulo sejam um em termos de uma substância, eles são divididos em dois grupos com base em suas diferenças de entendimento. O Apóstolo diz assim: ‘Despistes-vos do velho homem com suas obras e vos revestistes do novo homem, que está sendo renovado em conhecimento à imagem do seu Criador’, Cl 3,9-10. Da mesma forma, embora o mundo seja um em sua substância, ele se torna uma coisa ou outra dependendo da perspectiva de cada um: para o pecador é velho, para o santo é novo. Uma vez que o mundo foi crucificado para o santo, nem a circuncisão nem a incircuncisão significam nada para ele, assim como ser judeu ou gentio, Cl 3,11. O que conta é uma nova criação, na qual nosso corpo humilde está sendo transformado no corpo glorioso de Cristo, Fl 3,21”.
Trata-se da novidade radical trazida por Cristo, que não está mais vinculada a realidades antigas ou caducas: “‘As coisas antigas já passaram, e todas as coisas se fizeram novas’, 2Cor 5,17; ‘O sol tem um tipo de esplendor, a lua outro, e as estrelas outro, e estrela difere de estrela em esplendor; assim será com a ressurreição dos mortos’, 1Cor 15,41-42. Daniel concorda com isso, dizendo: ‘Multidões que dormem no pó da terra acordarão, algumas para a vida eterna, outras para vergonha e desprezo eterno’, Dn 12,2, e: ‘Os que são sábios resplandecerão como o fulgor do firmamento, e muitos que são justos, como as estrelas para sempre’, Dn 12,3. Nem a circuncisão nem a incircuncisão têm qualquer valor no sol, na lua, no firmamento e nas estrelas. Em vez disso, é um novo estado de ser, sem aquelas partes do corpo que podem ser divididas. Assim acontece conosco, que amamos a Deus e para quem foram preparadas coisas que nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem que penetraram o coração do homem”.
Devemos buscar a vida do espírito que plenifica todas as regras: “‘A todos os que seguirem esta regra, paz e misericórdia, assim como ao Israel de Deus’, Gl 6,16. Todas as coisas são medidas por um padrão, e, quando uma régua é colocada ao lado delas, elas se revelam como certas ou erradas. Dessa forma, o ensinamento de Deus é uma espécie de padrão para palavras, que diferencia o que é justo do injusto. Quem o seguir terá a paz interior que excede todo o entendimento, Fl 4,7 e, depois dela, a misericórdia, que é a possessão especial do Israel de Deus (…). Afinal, há muitos deuses e muitos senhores, tanto no céu quanto na terra, que imitam Deus e o Senhor, 1Cor 8,5. Ele usa a única e elegante expressão ‘Israel de Deus’ para resumir a essência da epístola e mostrar que tudo o que foi dito até este ponto não é estranho, mas relevante para a questão principal”.
As marcas de Jesus no corpo, isto é, a identificação com Jesus, superam todas as regras e dificuldades: “‘Para o futuro ninguém me inquiete, porque eu trago no meu corpo as marcas de Jesus. Irmãos, que a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo seja com o vosso espírito. Amém’, Gl 6,17-18. Isso não significa que ele aparentemente falhou como mestre, mas que o agricultor passa por dificuldades porque os arbustos que ele plantou estão secando, e que o pastor está ansioso porque o rebanho que ele havia reunido está disperso e despedaçado. O grego expressa melhor: ‘Finalmente, que ninguém me traga dificuldades’, para que eu não seja novamente obrigado a ser afligido entre vós. Aquele que não vive ou pensa de acordo com o que seu mestre ensinou e fez causa dificuldades a ele. \[Ao dizer isso] Paulo também é capaz de antecipar a argumentatividade daqueles que achavam adequado se opor a ele continuamente”.
Os que sofrem se identificam imediatamente com Jesus. Esta é a vida do espírito e não da carne: “Esta é a mesma estratégia que ele adotou após uma longa discussão em sua epístola aos Coríntios sobre mulheres cobrindo suas cabeças e homens deixando suas cabeças descobertas. Ele disse: ‘Se alguém parece ser argumentativo, nem nós nem a igreja de Deus temos qualquer outra prática’, 1Cor 11,16. Em outras palavras, o que vos dissemos parece saudável e correto para nós, e, se alguém não está disposto a ceder à verdade e, em vez disso, busca contra-argumentos, deve saber que a pessoa mais inclinada a discutir do que a ser ensinada não merece uma resposta. Quem é circuncidado na carne durante a era cristã não carrega as marcas do Senhor Jesus, mas se gloria em sua própria vergonha. Mas aquele que é severamente açoitado, frequentemente preso, espancado com varas três vezes, apedrejado uma vez e tudo o mais mencionado na lista de coisas dignas de ostentação \[de Paulo], 2Cor 11,23-27 — essa pessoa carrega em seu corpo as marcas do Senhor Jesus. É possível também que aquele que espanca seu corpo e o escraviza, para que, depois de pregar a outros, não seja considerado incompetente, 1Cor 9,27, carregue em seu corpo as marcas do Senhor Jesus. Além disso, os apóstolos se alegraram por terem sido considerados dignos de sofrer afronta pelo nome de Jesus, At 5,41”.
O ‘amém’ vem do Israel espiritual e não da circuncisão da carne: “A graça do Senhor Jesus Cristo — não dissensão, não escravidão à Lei, não brigas, não contendas — seja com o vosso espírito. Ele não diz ‘com a vossa carne’ ou ‘com a vossa alma’, seja porque elas se tornaram espirituais e deixaram de ser carne e alma, ou porque as coisas menores são subsumidas pela principal. Pois a alma e a carne estão sujeitas ao espírito, sobre o qual Eclesiastes fala: ‘O espírito retornará àquele \[isto é, Deus] que o deu’, Ecl 12,7, e, em outro lugar, Paulo: ‘O próprio Espírito testifica com o nosso espírito’, Rm 8,16. Esta graça do Senhor Jesus não está com todos, mas apenas com aqueles que conquistam o direito de serem chamados de ‘irmãos’ pelo Apóstolo, tanto irmãos na fé quanto irmãos de sangue. Amém é uma palavra hebraica. Os tradutores da Septuaginta a traduzem como ‘faça-se’, enquanto Áquila, Símaco e Teodócio a traduzem como ‘fielmente’ ou ‘verdadeiramente’. No Antigo Testamento, Deus ratifica suas próprias palavras com um juramento convencional, dizendo: ‘Tão certo como eu vivo, declara o Senhor’, Nm 14,28; e também jura por meio de seus santos: ‘Tão certo como vive a sua alma’, Jt 12,4. Da mesma forma, no Evangelho, nosso Salvador usa a palavra amém para confirmar que as palavras que profere são verdadeiras. Amém significa o consentimento do ouvinte e é um sinal de veracidade”.
A meditação de São Jerônimo sobre o final da epístola aos Gálatas revela com clareza o cerne da fé cristã: não é a observância de ritos externos ou a filiação carnal que confere valor diante de Deus, mas a conformação interior ao Cristo crucificado. A nova criação, inaugurada por sua cruz e ressurreição, supera as distinções que outrora separavam judeu e gentio, circuncidado e incircuncidado. Essa nova realidade é vivida segundo o Espírito, que plenifica a Lei e nos configura à imagem do Senhor. O apóstolo Paulo, marcado no corpo pelas dores de Cristo, torna-se testemunha da graça que transforma e inscreve os nomes dos fiéis no céu. É essa graça que nos dá paz, misericórdia e a dignidade de dizer com fé: Amém. E é o amém que inscreve nossos nomes nos céus.