A celebração anual do Mistério da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo

Deus eterno e todo-poderoso, para dar aos homens um exemplo de humildade, quisestes que o nosso Salvador se fizesse homem e morresse na cruz. Concedei-nos aprender o ensinamento da sua paixão e ressuscitar com Ele em sua glória. Por nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, na unidade do Espírito Santo (Coleta da Santa Missa).

 

Na conclusão de um percurso litúrgico emerge então seu verdadeiro objetivo ou intencionalidade. O que se espera daqueles que superaram os 40 dias penitenciais? Qual é o horizonte deste tempo chamado Quaresma? Duas são as respostas cabíveis.

 

A Igreja aos pés do Calvário e na Cruz de Cristo

Respondeu-lhes Jesus: É chegada a hora para o Filho do Homem ser glorificado” (Jo 12, 23).

Primeiramente atingir, após as exigências e agruras penitenciais, a capacidade de participação adequadamente do gesto derradeiro da Quaresma, a Paixão de Cristo. A meta da Quaresma reside no Calvário. No Supremo Sacrifício da Cruz repousa toda a grandiosidade do trajeto penitencial. Na Cruz, como altar da plena Obediência do Filho, expressão do perfeito amor ao Pai e aos irmãos, Cristo engloba todos os significados de sua Missão e realiza a suprema Obra da Redenção.

Com efeito, de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que todo o que n’Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna. Pois Deus não enviou o Filho ao mundo para condená-Lo, mas para que o mundo seja salvo por Ele (Jo 3, 16-17).

O Papa, S. João Paulo II, em ‘Reconciliatio et Poententia’ (1984), Declaração do Sínodo, sentenciava acerca do aspecto redentivo do ‘Mysterium Crucis’:

E exatamente perante o quadro doloroso das divisões e das dificuldades da reconciliação entre os homens, convido a olhar para o mistério da Cruz (“mysterium Crucis”), como para o drama mais alto, no qual Cristo conhece e sofre profundamente o drama da divisão do homem em relação a Deus, ao ponto de clamar com o salmista: “Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?”; e realiza ao mesmo tempo a nossa reconciliação. O olhar fixo no mistério do Gólgota deve fazer-nos recordar sempre aquela dimensão “vertical” da divisão e da reconciliação, que diz respeito à relação homem-Deus, e que, numa visão de fé, prevalece sempre sobre a dimensão “horizontal”, isto é, sobre a realidade da divisão e sobre a necessidade da reconciliação entre os homens. Sabemos, de fato, que tal reconciliação entre os homens não é e não pode ser senão o fruto do ato redentor de Cristo, morto e ressuscitado para destroçar o reino do pecado, restabelecer a aliança com Deus e abater assim o muro de separação, que o pecado tinha erguido entre os homens (RP 7).

Para o Papa, no Calvário se entrecruzam as suas duas dimensões inseparáveis, mesmo distintas, que redimem plenamente a vida: de um lado, a verticalidade da Redenção: ‘O olhar fixo no mistério do Gólgota deve fazer-nos recordar sempre aquela dimensão “vertical” da divisão e da reconciliação,’, de fato, no Domingo de Ramos e na Sexta-Feira Santa, a Igreja ‘fixa seus olhos’ nas alturas abissais do Amor, que incomensaurável desvela-se na cruel Paixão e Morte de Cristo.

Desse modo, cercados como estamos de uma tal nuvem de testemunhas, desvencilhemo-nos das cadeias do pecado. Corramos com perseverança ao combate proposto, com o olhar fixo no autor e consumador de nossa fé, Jesus. Em vez de gozo que se Lhe oferecera, ele suportou a cruz e está sentado à direita do trono de Deus. Considerai, pois, atentamente aqu’Ele que sofreu tantas contrariedades dos pecadores, e não vos deixeis abater pelo desânimo. Ainda não tendes resistido até o sangue, na luta contra o pecado (Hbr 12, 2-4).

Do outro, o cenário da Cruz, visto sob as luzes da Fé exibe a horizontalidade máxima da Redenção do Calvário. A superação do Pecado na carne crucificada de Cristo gerou definitiva ‘Fraternidade Humana’, Universal e indetrutível:

(…) numa visão de fé, prevalece sempre sobre a dimensão “horizontal”, isto é, sobre a realidade da divisão e sobre a necessidade da reconciliação entre os homens. Sabemos, de fato, que tal reconciliação entre os homens não é e não pode ser senão o fruto do ato redentor de Cristo, morto e ressuscitado para destroçar o reino do pecado, restabelecer a aliança com Deus e abater assim o muro de separação, que o pecado tinha erguido entre os homens.

A Semana Santa abriga todos os significados da vida cristã, como exemplaridade de Cristo, isto é, nossa existência que decorre no tempo e no espaço, dentro de um roteiro precário que debutará como plena identidade de Cristo. No Batismo fomos imersos e redimidos por sua Morte e Ressurreição, na Eucaristia atua de modo sacramental, verdadeiro e místico, essa ‘vida nova’.

O ‘Ano Litúrgico’ é a vida da ‘Esposa’ (Ef 5, 25-33 e, especialmente, Ap 21-22) seu percurso junto ao seu Divino Esposo, a quem jamais cessará de louvar e glorificar, ao mesmo tempo que Ele a purifica para apresentá-la ao Pai, perfeita e esplendente de bela, ‘nova Eva’:

A santa mãe Igreja considera seu dever celebrar, em determinados dias do ano, a memória sagrada da obra de salvação do seu divino Esposo. Em cada semana, no dia a que chamou domingo, celebra a da Ressurreição do Senhor, como a celebra também uma vez no ano na Páscoa, a maior das solenidades, unida à memória da sua Paixão. Distribui todo o mistério de Cristo pelo correr do ano, da Incarnação e Nascimento à Ascensão, ao Pentecostes, à expectativa da feliz esperança e da vinda do Senhor. Com esta recordação dos mistérios da Redenção, a Igreja oferece aos fiéis as riquezas das obras e merecimentos do seu Senhor, a ponto de os tornar como que presentes a todo o tempo, para que os fiéis, em contato com eles, se encham de graça (SC 102).

 

A Igreja Glorificada na festa Pascal da Vitória sobre o Pecado e a Morte

Por tradição apostólica, que nasceu do próprio dia da Ressurreição de Cristo, a Igreja celebra o mistério pascal todos os oito dias, no dia que bem se denomina Dia do Senhor ou domingo. Neste dia devem os fiéis reunirem-se para participarem na Eucaristia e ouvirem a Palavra de Deus, e assim recordarem a Paixão, Ressurreição e glória do Senhor Jesus e darem graças a Deus que os “regenerou para uma esperança viva pela Ressurreição de Jesus Cristo de entre os mortos” (1 Pedr. 1,3). O domingo é, pois, o principal dia de festa a propor e inculcar no espírito dos fiéis; seja também o dia da alegria e do repouso. Não deve ser sacrificado a outras celebrações que não sejam de máxima importância, porque o domingo é o fundamento e o centro de todo o ano litúrgico (SC 106).

Retornemos à questão colocada no início desse artigo: Qual é o horizonte deste tempo chamado Quaresma? Se de um lado já apontamos os horizontes do Calvário, escola da vida penitencial: ‘Deus eterno e todo-poderoso, para dar aos homens um exemplo de humildade, quisestes que o nosso Salvador se fizesse homem e morresse na cruz.

A Quaresma vivida e celebrada eficaz e piamente nos induz aos pés do Calvário a usufruir do Mistério da Sua Paixão e Morte redentoras, das quais somos partícipes. Mas, a Quaresma também conduzirá a Igreja, Esposa ao pés da Cruz, e nela, unida ao seu Divino Esposo, à Glória da Ressurreição.

Por tradição apostólica, que nasceu do próprio dia da Ressurreição de Cristo, a Igreja celebra o mistério pascal todos os oito dias, no dia que bem se denomina Dia do Senhor ou domingo.

A Igreja morre na Cruz, no Corpo de seu Divino Esposo para com Ele ressuscitar, pura, sem mancha.

Não há na Quaresma hipótese que, analogamente ao percurso de Israel pelo deserto, não se conclua na alegria da chegada à terra prometida, a Páscoa, como caminho da morte e da escravidão para a vida plena.

Com a Ressurreição de Cristo, plenitude de sua Morte, Cristo introduz a Igreja na Festa da Reconciliação, do Perdão e da Alegria fraterna Universal. ‘Todo aquele que está em Cristo é uma nova criatura. Passou o que era velho; eis que tudo se fez novo!’ (2Cor 5,17). Ou segundo a linguagem densa e simbólica do Apocalipse:

Alegremo-nos, exultemos e demos-lhe glória, porque se aproximam as núpcias do Cordeiro. Sua Esposa está preparada. Foi-lhe dado revestir-se de linho puríssimo e resplandecente (pois o linho são as boas obras dos santos). “Ele me diz, então: “Escreve: Felizes os convidados para a ceia das núpcias do Cordeiro”. Disse-me ainda: “Estas são palavras autênticas de Deus” (Ap 19, 7-9).

A Páscoa é a ‘meca’ e o resultado de todos os exercícios penitenciais.

Purificados pelas práticas quaresmais, tendo como auge, de um lado, a férvida celebração do Sacramento da Penitência e do outro a participação piedosa e ativa nos ritos da Semana Santa, somos introduzidos no ‘banquete do Cordeiro Pascal’ na condição de Esposa amada e redimida.

A Quaresma desemboca no incontido canto do Glória (ao repicar dos sinos) e no canto mais ancentral no peito da Igreja: o Aleluia Pascal!

Padre Pedro Paulo A. Santos 

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