Como expusemos em mais de uma ocasião, São Beda, 672-735, monge inglês, era um exegeta que, como era próprio da Patrística da teologia monástica, não podia deixar de interpretar as Escrituras sem relacioná-las com a vida litúrgica da Igreja. Ou talvez fosse melhor dizer que a vida litúrgica era a fonte de sua interpretação bíblica. Neste solene período pascal, no qual lemos com frequência passagens do Evangelho de João, temos também a alegria de ler algumas passagens das epístolas deste evangelista. No domingo da oitava da Páscoa, a perícope proposta é tirada da primeira epístola de João. Trata da fé, que nasce na Páscoa de Cristo, e das obras de amor, como frutos da fé.
Incialmente, Beda mostra-nos que a fé não é apenas uma confissão com palavras, mas é sobretudo uma confissão em obras de amor: “‘Todo aquele que crê que Jesus é o Cristo que nasce de Deus’ 1Jo 5, 1. Quem é que acredita que Jesus é o Cristo? Aquele que vive da maneira que Cristo ordenou. Que nenhum herege (e nenhum cismático) diga: ‘Nós também acreditamos (que Jesus é o Cristo)’. Porque ‘os demônios também acreditam e tremem’, Tg 2, 19, e, como lemos no Evangelho, ‘eles confessaram e sabiam que Ele era o Cristo’, Lc 4, 41. Mas, porque eles não têm amor e obras da verdade, eles não são de Deus. ‘E quem ama aquele que gerou alguém, amará também aquele que dele nasceu’, 1Jo 5, 1b” (Beda, o Venerável. ‘On the Seven Catholic Epistles’. By David Hurst. Kalamazoo, Michigan: Cistercian Publications, 1985, p. 213, tradução do autor).
Beda acentua então o cuidado de João em estimular o amor ao próximo a partir do sentido da fé cristã: “Por sua admirável habilidade em pregar, o bem-aventurado João teve o cuidado de nos inflamar no amor ao próximo, primeiro, lembrando-nos que todo aquele que acredita perfeitamente nasceu de Deus, e então, sugerindo que, para alguém que ama a Deus, é certo que ame também aquele que nasceu de Deus. Porque, se alguém é tão estúpido que negligenciou seu semelhante, com o qual passa pela mesma jornada perdida na terra, esta pessoa deve ser avisada que deveria amar seu semelhante pelo menos por esta razão: que ele nasceu de Deus, que compartilha com ele da graça divina, que com ele espera as mesmas recompensas da vida celestial. Esta exortação diz respeito especialmente àqueles que foram feitos irmãos para nós, não apenas pela sua participação na nossa vida humana, mas também pela sua profissão de fé” (p. 214).
Portanto, ama-se não por parentesco, mas pela comunhão de fé nos mandamentos do Senhor, isto é, no mandamento do amor, em que a fé se faz visível: “Mas porque há alguns que amam o próximo apenas por parentesco consanguíneo ou por alguma vantagem temporal, o santo evangelista deixa bem claro quem é o verdadeiro amante de seu próximo anexando o versículo que segue: ‘Nisto percebemos que amamos os filhos de Deus, quando amamos a Deus e guardamos seus mandamentos’, 1Jo 5, 2. Este prova, portanto, que ama o próximo, que também é percebido como alguém que arde de amor por seu Criador. E para que ninguém se engane sobre seu amor por seu Criador, professando apenas por palavras que o ama, o evangelista disse: ‘Nisto percebemos que amamos os filhos de Deus, quando amamos a Deus’ – e fez bem em acrescentar: – ‘e guardamos seus mandamentos’” (p. 214).
Contudo, os próprios mandamentos, que são mandamentos do amor, são leves, segundo as palavras de Jesus. Eles, na verdade, tornam-se leves não porque o sejam em si, mas porque, para cumpri-los, ganhamos nova força a partir do amor de Jesus Cristo por nós: “‘Pois isto é amar a Deus: observar os seus mandamentos’, 1Jo 5, 3. O próprio Senhor também diz isso: ‘se alguém me ama, guarda a minha palavra’, Jo 14, 23. A prova do amor, portanto, é a sua manifestação em obra. Porque amamos verdadeiramente se, segundo seus mandamentos, mantemos nossa vontade própria sob controle, pois aquele que ainda vagueia por desejos ilícitos não ama verdadeiramente a Deus, porque fala contra o Senhor em sua obstinação. ‘E seus mandamentos não são pesados’, 1Jo 5, 3b . Ele mesmo disse: ‘Meu jugo é suave e meu fardo é leve’, Mt 11, 30. Porém, isto não deveria parecer contraditório com as palavras do Senhor ou do bem-aventurado João quando se diz em outro lugar: ‘quão estreito é o porta e quão reto é o caminho que conduz à vida’, Mt 7, 14; também em relação ao que o profeta diz: ‘Por causa das palavras dos teus lábios guardei caminhos difíceis’, Sl 17, 4; e o Apóstolo: ‘Convém-nos entrar no reino de Deus por muitas tribulações’, At 14, 22. Porque a esperança das recompensas celestiais e o amor de Cristo tornam leves aquelas coisas que por sua própria natureza são duras e ásperas” (p. 214).
O amor vence o mundo, esta é a doutrina da fé cristã: “Pois é difícil sofrer perseguição devido à justiça, Mt 5, 10, mas, o fato de o reino dos céus pertencer àqueles que sofrem, torna até isso doce. Portanto, é bom que se acrescente: ‘Pois todo o que nasceu de Deus vence o mundo’, 1Jo 5, 4. Os mandamentos divinos não são difíceis porque todos os que a eles se dedicam com verdadeira fidelidade rejeitam tanto as adversidades deste mundo como suas seduções, com mente plácida, amando a própria morte também como entrada na pátria celestial. E para que ninguém confie em sua própria força para ser capaz de superar a devassidão ou feitos do mundo, ele acrescenta deliberadamente: ‘Esta é a vitória que vence o mundo, a nossa fé’, 1Jo 5, 4b, aquela fé certamente que opera por meio do amor, Gl 5, 6, aquela fé pela qual pedimos humildemente a ajuda daquele que diz: ‘No mundo sofrereis perseguições, mas tende confiança, eu venci o mundo’, Jo 16, 33” (p. 215).
E a vitória está na fé que vem de Jesus e sua Páscoa: “‘Quem é o vencedor do mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus?’ 1Jo 5, 5. Vence o mundo aquele que une obras dignas da fé à sua crença em Jesus como o Filho de Deus. Mas a fé e a confissão de sua divindade por si só é suficiente para a salvação? Vede o que segue: ‘Este é aquele que veio pela água e pelo sangue: Jesus Cristo’, 1Jo 5, 6. Portanto, aquele que era o eterno Filho de Deus tornou-se um ser humano no tempo, que aquele que nos criou pelo poder de sua divindade pode nos recriar pela fraqueza de sua humildade. ‘Aquele que veio pela água e pelo sangue’: a água de sua purificação batismal e o sangue de sua paixão. ‘Não apenas pela água, mas pela água e pelo sangue’, 1Jo 5, 6b. Ele não só se dignou a ser batizado para a nossa purificação, para que nos pudesse consagrar e transmitir o sacramento do batismo, mas também deu seu sangue por nós; redimiu-nos com sua paixão: que recuperemos sempre a saúde e que, por seus sacramentos, possamos ser alimentados para a salvação” (p. 216).
É importante observar que Beda insiste que é o Espírito Santo que nos conduz para essa fé que é também amor concreto. E a fé cristã nasce mesmo do Espírito que recebemos no Batismo: “‘E o Espírito é que dá testemunho, porque o Espírito é a Verdade’, 1Jo 5, 6c. Quando o Senhor foi batizado no Jordão, o Espírito Santo desceu sobre ele na aparência de pomba, Mt 3, 16-17, dando testemunho de que ele é a verdade, isto é, o verdadeiro Filho de Deus; o verdadeiro mediador entre Deus e os homens, 1Tm 2, 5; o verdadeiro redentor e reconciliador da raça humana, ele próprio verdadeiramente limpo de toda mancha de pecado, verdadeiramente capaz de tirar os pecados do mundo, Jo 1, 29. O próprio batista também entendeu isso quando viu a manifestação do mesmo Espírito e disse: ‘Aquele que me enviou para batizar na água me disse: – Aquele em quem vires o Espírito descer e permanecer é o que batiza no Santo Espírito. Eu vi e dou testemunho de que este é o Filho de Deus’, Jo 1, 33-34. Portanto, porque o Espírito dá testemunho de que Jesus Cristo é a verdade, ele se autodenomina verdade, Jo 14, 6, e o batista o proclama como verdade: o filho do trovão, Jo 19, 34, que espalha as boas novas sobre a verdade” (p. 217).
Podemos dizer que, ao comentar esta pequena perícope da primeira epístola de João, Beda oferece-nos uma visão de conjunto da nossa fé: a verdade da Palavra, a qual se torna presente pela ação do amor. Nada disso é possível para nós, cristãos, se essa fé não provier do Espírito Santo, que recebemos no Batismo. Por isso a Páscoa culmina em Pentecostes. São, pois, cinquenta dias de plenitude pascal em que as celebrações litúrgicas confirmam e aumentam a nossa fé e o nosso amor.
Carlos Frederico Calvet da Silveira, professor da Universidade Católica de Petrópolis e do Seminário de São José, Rio