Domingo de Ramos e da Paixão do Senhor no Centro Histórico do Rio de Janeiro

A Providência é divina, todos cremos, Deus é amor, e o dilúvio aguardado para o início da Semana Santa não se precipitou sobre o Rio de Janeiro.

A programação anunciada pela Irmandade e Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores no Domingo de Ramos foi mantida, se transformando numa grande bênção.

E ela ocorreu coberta de júbilo: os fiéis lotando a área coberta sob o Arco do Teles, junto a um oratório barroco, ornamentado com palmas, e que foram oferecidas aos presentes após aspergidas com água benta.

O padre Victor Hugo Nascimento, do alto de uma sacada ornamentada, na fachada da futura sede do jornal “Diário do Rio”, iniciou o rito do Domingo de Ramos, assim iniciando a liturgia da Semana Santa, em meio ao balouçar dos sinos, cujas badaladas ecoavam entre o casario histórico e o coral cantando os refrões entoados com tradicional música processional e sacra.

Dali, os fiéis seguiram em belíssima procissão pela Travessa do Comércio até a arcada na fachada da Igreja Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, encontrando as portas fechadas.

O padre Victor Hugo Nascimento então reproduziu a cerimônia da “batida na porta”, resgatando uma tradição lusa, tão característica da cidade de Braga, em Portugal.

Com a sua cruz processional, bateu três vezes, proferindo o rito, e sendo respondido pelo coral, posicionado nos balcões na fachada da Igreja setecentista, até a abertura das portas e o ingresso da assembleia que lotou a nave e as tribunas do belíssimo templo barroco, construído pela união de esforços dos comerciantes lusos estabelecidos na região central do Rio de Janeiro.

Bem poderíamos dizer, aliás, que a celebração da ritualística de domingo foi tanto portuguesa quanto essencialmente carioca, uma vez que em nossa terra, embora ela, hoje, soe como algo relativamente incomum, e motivo de uma certa curiosidade, tudo mostra já ter sido bastante corriqueira, e na realidade assaz característica da religiosidade do Rio de Janeiro.

A imprensa carioca e os ensinamentos de nossos clérigos do passado são testemunhas de que a tradição dos toques à porta dos templos, pela celebração de Ramos, era algo tão próprio da cultura religiosa do Rio, que de suas poucas referências encontradas notamos que já fosse algo cultural, e que já devia de ser sabido por qualquer um que tomasse parte nas celebrações da Semana Santa de antanho.

Afinal, aquilo é pouco referenciado, é aquilo que espera ser sabido, e tão comum que fosse, nem precisa ser descrito, quanto menos (a)notado, ou então falado por alguém.

Ainda assim, algumas almas caridosas, quando aproximavam-se as celebrações do Domingo de Ramos, naqueles idos de 1880 a 1930, faziam a gentileza de descrever aos fiéis iniciantes o passo a passo das festividades da época, na esperança de espalhar algum conhecimento, e protocolo para os dias da Quaresma.

Na revista “Excelcior”, nº 4, ano de 1928, página 18, o reverendíssimo vigário de Santa Teresa, padre Joaquim Nabuco, ensinava em uma galante reportagem intitulada “A Semana Santa e a Santa Paschoa” que o costume de se abrirem as portas a pedido do celebrante das missas significava a abertura “das portas de Jerusalém[,] a pedido do Christo triumphador da morte”, e que, no começo das celebrações de Ramos, ainda no Oriente, esse ritual era realizado pelo bispo de Jerusalém, repetindo os passos do Senhor, indo montado “numa besta” até as portas da Igreja da Ressurreição, onde ele então pedia para adentrar o templo, em memória da chegada de Jesus às portas da cidade santa.

Em uma fatídica edição do “Jornal do Commercio”, nº 108, de 18/04/1886, e ainda no Império do Brasil, encontramos editorial curiosíssimo no qual a celebração de Ramos daqueles dias fez-se rigorosamente referida. Ali, menciona-se dentre as liturgias mais da celebração, que logo ao fim do ato processional, o povo finalmente se depara com as portas embarradas de seu templo, e os fiéis, que ficam fora, acabam representando a “humanidade desterrada do céo”, e que para nele entrar, através das portas que estão cerradas, repetem esse cântico dos anjos:

<< Glória, louvor e honra!>>

Então, o subdiácono bate com o conto da cruz na porta, que logo se abre, porque a cruz foi a chave que nos abrio as portas do céo, e diz:

<< Principes, abri as vossas portas. Portas, levantai-vos, e entrará o rei da gloria. >>

E os anjos perguntão:

<< Quem é esse rei da gloria? >>

E o sacerdote responde:

– << O Senhor poderoso, o Senhor da Força, o Senhor victorioso das batalhas! >>

Em seguida bate de novo, e alçando mais a voz reitera ainda uma vez a ordem de abrir:

<< Portas, levantai-vos… >>”

A matéria do Jornal do Commercio de 18/04/1886 prossegue, explicando que “em muitos povos, a procissão sahia dos muros das cidades, e a cerimonia que”, então se descrevia, e que já naquele tempo se realizava defronte das igrejas, antes “se fazia na porta da cidade”, de modo que, a “representação era muito mais expressiva, e guardava mais a conformidade com as palavras do sacerdote:

<< Principes, abri as vossas portas. Portas, levantai-vos e entrará o Rei da Glória! >>”

E continuava o artigo: “[e]sta cerimonia se realiza[va] tres vezes consecutivas, na terceira vez abre-se a porta, e o sacerdote, isto é, Jesus Christo, e os fieis que o acompanhão, os quaes se vão reunindo no caminho da vida, entrão todos juntos na igreja, que é a figura do céo”.

Com mais ou menos detalhes, a “Gazeta de Notícias”, ed. 98, de 08/04/1903, complementa a descrição desse mesmo rito, acrescentando que, diante da igreja, os meninos do coro, do lado de dentro da igreja, cantam um hino que começa com “<< Vós Sois o Rei d’Israel, o nobre descendente de David: oh Rei Santo! vós vindes em nome do Senhor >>, e a cada estrophe, responde o clero, que está fora: << Gloria, louvor e honra a Vós, Christo, Redemptor e Rei, a vós cujos filhos celebram o triumpho com um piedoso Hosanna! >>”, e aí seguem-se as batidas à porta, e a troca de repostas entre o coro e o povo que está na frente do templo.

O “A União”, ed. nº 106, de 16/04/1905, citando Goffiné, praticamente repete conteúdo idêntico sobre esse momento processional praticado pelos católicos cariocas; o “O Século”, ed. nº 1272, de 31/03/1912, também, o “Jornal do Commercio”, ed. nº 106, de 16/04/1916, igual, o “O Paiz”, ed. n º 13.300, de 20/03/1921, semelhante, não fica atrás, e até mesmo o “Jornal do Brasil”, ed. nº 83, de 10/04/1938, relata essa celebração, relembrando a importância da festividade carioca da abertura das portas no Domingo de Ramos como um momento “triunfante” em que a batida “trez vezes à porta (…) com a base da haste da cruz”, significava tanto a “vitória” como a abertura da “Jerusalém celeste” àqueles que a esperam.

Melhor testemunho não há, de que essa tradição de interpelação às portas é também carioca, ainda que tivesse vindo com os portugueses, e especial com os lusitanos oriundos do antigo arcebispado de Braga, onde mesmo hoje essa tradição segue sendo cultivada, do que a simpática matéria jornalística que a “Gazeta de Notícias”, ed. nº 242, de 30/08/1897, fez publicar a respeito da consagração do então “novo templo matriz da freguesia de S. Lourenço” de Niterói:

“Ás 6 horas da manhã, deu-se princípio à solenmnidade pelo modo seguinte: (…) Dentro do templo[,] achava-se apenas o diácono, revestido de amicto, alva, corão e estola branca. Do lado de fora[,] e ajoelhados todos os presentes, [e recitada a ladainha de Todos os Santos. (…) Durante a cerimônia[,] foi entoada uma antífona pelo clero. De volta à frente da igreja, o Rvm. Sr. bispo patê à porta com o baculo pastoral, dizendo: << Principes, abri as vossas portas: levantai-vos portas eternas e o Rei da Gloria entrará >>”…e em dali por diante, o mesmo ritual das portas, que a tradição luso-carioca realiza, e que foi revivido na procissão, depois de tantos anos, pela missa e procissão na Lapa dos Mercadores, no último Domingo, dia 24 de março.

A tradição da liturgia, em real, se manteve em toda a celebração do Domingo de Ramos realizado no orago da Senhora da Lapa, com missa incensada, regatando os tempos mais antigos de nossa fé e existência, e com a participação do coral e orquestra, de repertório sacro, organizado pela cantora lírica Juliana Sucupira, e presidida pelo padre Victor Hugo Nascimento, concelebrada pelo padre Vitor Pimentel Pereira, com assistência dos cerimoniários Cauã Santos, Edilton Antônio, Matheus da Costa e Silva, Renan Silva , Vinícius Gomes Silva, e o apoio logístico dos incansáveis Amaro Leandro Barbosa, Marcelo Viana e equipe.

O contentamento do provedor e comissário Cláudio André de Castro foi evidente ao unir esforços para a concretização dessa cerimônia arraigada de simbolismos sobre as tradições, tão bem desenvolvidas na Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores, desde a sua reabertura, há praticamente um ano, em princípios do mês de março do ano passado. Acompanhavam o provedor e comissário junto ao presbitério, a sua esposa, a Sra. Bruna Castro, sua mãe, a Sra. Lourdes Padilha, o seu sócio no jornal “Diário do Rio”, Sr. Quintino Gomes Freire e esposa, a Sra. Ivana Luterbak, e representando a Ordem Equestre do Santo Sepulcro de Jerusalém, o cavaleiro Olav Schrader e sua esposa Exma. esposa, além do cavaleiro Fernando Bicudo. No mesmo ambiente, e representando a Uniapac Adce’ Rio, seus presidente e vice- presidente, os Srs. Alberto Gallo e Elmair Neto, juntamente o presidente da Uniapac Adce’ Jovem Rio, o Sr. Matheus Campelo, e também o Sr. Amador Júnior.

Em sua belíssima homilia, o padre Victor Hugo Nascimento conclamou a todos para abrir os corações à conversão quaresmal, da mesma forma como as portas do templo, representando as portas da cidade de Jerusalém, se abriram às batidas da Cruz do Nosso Senhor Jesus Cristo.

Um domingo de bênçãos que se estenderá em todos os próximos dias da Semana Santa até o próximo Domingo de Páscoa, ressaltando-se a celebração do sábado, que se iniciou às 18h15, conforme a programação apresentada nas ilustrações, que compõe essa matéria.

O prestígio dos cariocas católicos que frequentam as celebrações na Igreja de Nossa Senhora da Lapa dos Mercadores dá-nos a certeza de uma abençoada Semana Santa, como há muito nossa cidade pede, e que fica reforçada por essas belas empreitadas, que bem certo ficarão marcadas na memória do povo fluminense.

 

Elmair Neto e Matheus Campelo

Membros da ADCE’ Rio – Associação de Dirigentes Cristãos de Empresa do Rio de Janeiro

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