Beda: o dom perfeito

São Beda nasceu por volta de 672 no norte da Inglaterra. Fez-se beneditino e entregou-se totalmente à vida monástica na Abadia de Jarrow, norte da Inglaterra. Morreu em 735. Conhecido como ‘Beda, o Venerável’, graças a sua santidade e imensa influência na cultura cristã a partir do século VIII. Do Comentário de Beda às Cartas Católicas, selecionamos aqui o trecho relativo à Carta de Tiago, Capítulo 1, versículos 17-21.

A atribuição de tudo o que temos a Deus é atitude própria do fiel. Esta virtude está presente em toda a Escritura, mostra-a São Beda a partir da Carta de São Tiago: “‘Todo dom precioso e toda dádiva perfeita vêm do alto; descem do Pai das luzes’, Tg 1, 17. Após ter ensinado que os vícios, pelos quais somos tentados, não vêm de Deus, mas de nós mesmos, Tiago mostra, ao contrário, que qualquer bem que façamos é como que um dom de Deus. Por isso, ele fala do ‘Pai das Luzes’, porque sabe quem é o autor dos carismas espirituais. Essa é também a declaração do apóstolo Paulo, que concorda com isso quando diz: ‘Que tendes que não tenhais recebido?’ 1Cor 4, 7. Nele, não há mudança ou sombra de alteração, porque não há mutabilidade na natureza de Deus, nem sua luz sofre, como a luz deste mundo, qualquer sombra de alteração” (Beda, o Venerável. ‘On the Seven Catholic Epistles’. By David Hurst. Kalamazoo, Michigan: Cistercian Publications, 1985, p. 16, tradução do autor).

Fomos gerados pela Palavra, isto é, Jesus Cristo. Este é o primeiro dom divino, que se situa na nossa origem, que imprime dignidade à nossa natureza humana em toda a obra da Criação: “‘De livre vontade, ele nos gerou, pela Palavra da verdade’, Tg 1, 18. O Senhor também diz no Evangelho: ‘Não me escolhestes a mim, mas eu vos escolhi a vós’, Jo 15, 16, e no profeta Oseias, ‘eu vos amarei voluntariamente’ Os 14, 5. Consequentemente, ele expande o que dissera, portanto, que todo melhor dom e todo dom perfeito vêm de Deus ao acrescentar que Ele nos transformou de filhos das trevas em filhos da luz através da água da regeneração, não devido a nossos méritos, mas ‘Ele nos gerou, pela Palavra da verdade, a fim de sermos como que as primícias de suas criaturas’, Tg 1, 18. Por causa desta declaração, não pensemos que nos tornaremos o que Ele mesmo é, mas Ele mostra que certa preeminência na criação nos foi concedida por esta adoção. Alguém traduziu estes versículos assim: ‘De bom grado, Ele nos gerou pela palavra da verdade, para sermos as primícias de sua criação’, isto é, para sermos melhores do que as outras coisas criadas que contemplamos. E a lei que ordenou que as primícias das colheitas e dos seres vivos fossem consagradas ao Senhor, Ex 22, 29-30, também ordenou que as primícias de ouro e prata, isto é, todos os melhores metais, fossem levados para a obra do tabernáculo, Ex 25, 2-3; e o profeta Jeremias disse sobre o antigo povo de Deus: ‘Israel é santo para o Senhor, as primícias de suas colheitas’, Jr 2, 3” (p. 16-17).

A dignidade, que tem sua origem na Criação, é elevada à dignidade da vida divina pelo Batismo, pelo qual nos tornamos filhos. Mas os filhos devem aprender a ser como o Pai e como o Filho Unigênito. Por conseguinte, como bons filhos, temos de aprender a ouvir a Palavra do Senhor: “‘Sabei isto, meus amados irmãos’, Tg 1, 19. É-vos bem conhecido tínheis em vós mesmos a tendência para os vícios. Ocorreu, no entanto, que fostes iluminados, não por vosso próprio esforço, mas pela graça do alto que vos antecipou. No entanto, que todo homem seja rápido para ouvir, lento para falar e lento para se irar. Deste ponto em diante, Tiago instruiu o ouvinte por comandos morais. E corretamente, primeiro ele aconselha cada um a emprestar seu ouvido rapidamente a alguém que ensina, mas somente depois a abrir sua boca para ensinar, porque é tolice alguém desejar pregar aos outros o que ele mesmo não aprendeu. Que qualquer um que ame a sabedoria, portanto, primeiro implore-a Deus, como ele aconselhou acima, Tg 1, 5: que o ouvinte humilde procure um mestre da verdade, e durante todo esse tempo não apenas restrinja cuidadosamente sua língua de conversas fúteis, mas também se abstenha de pregar a própria verdade recentemente aprendida. Por isso, Salomão, ao escrever sobre as diferenças dos tempos, diz: ‘Há um tempo para calar e um tempo para falar’, Ecl 3, 7. Por isso, os pitagóricos, que eram dotados da capacidade de ensinar o conhecimento natural, ordenam que seus ouvintes fiquem em silêncio por cinco anos e, assim, finalmente, permitem que ensinem. A verdade é mais seguramente ouvida do que pregada, pois quando é ouvida, a humildade é salvaguardada, mas quando é pregada é difícil para [o pregador] escapar de alguma ostentação mínima” (p. 17).

Esse tempo de escuta e de aprendizado é ilustrado por outras grandes figuras do Antigo Testamento: “Por isso, Jeremias, ao descrever a vida de um jovem bem-instruído, considera a restrição de manter o silêncio como uma das primeiras buscas da virtude: ‘É bom para um homem quando ele suportou o jugo desde a juventude; ele se sentará em solidão e ficará em silêncio’, Lm 3, 27-28. E lento, ele diz, para a raiva, porque a maturidade da sabedoria só é adquirida com uma mente tranquila. Pois está escrito: ‘a raiva habita no peito do tolo’, Ecl 7, 10. Ele não proíbe a rapidez da raiva de tal forma que aprove sua lentidão, mas ele está aconselhando que, mesmo num momento de agitação e briga, evitemos deixar a raiva se infiltrar, ou, se por acaso ela se infiltrar em nós, que contenhamos sua violência pela barreira de nossa boca, e quando a hora da crise tiver passado, nós a limpamos completamente de nossos corações de modo gradual. Ou pelo menos, ele nos ordenou que sejamos lentos para a raiva para que não mudemos a calma de nosso semblante em aspereza por qualquer motivo, exceto por um definido. Por exemplo, se percebermos que aqueles ao nosso redor, particularmente aqueles que nos foram confiados, não são de outra forma capazes de serem corrigidos, podemos mostrar a eles aspereza de palavras ou mesmo de um julgamento mais severo, desde que a condição de nossa mente permaneça calma, tanto quanto a natureza humana permitir. Acredito que Fineias, Nm 25, 6-8, Samuel, 1Sm 13, 7-14, Elias, 2Rs 1, 3-4, e Pedro, Jo 18, 10, foram lentos na ira, e ainda assim destruíram pecadores pela espada ou por uma palavra. Mesmo Moisés, embora fosse um homem muito manso, deixou o Faraó, a quem ele viu que era incorrigível, extremamente irado, Ex 11, 8, após tê-lo ameaçado com uma punição” (p. 18).

O silêncio e a contenção das palavras revelam um grande dom de Deus em nós, pois mostram que evitamos a discórdia e a divisão, provocadas pela ira: “‘Pois a ira do homem não cumpre a justiça de Deus’, Tg 1, 20. O significado desta passagem é fácil: que aquele que descuidadamente cede ao vício da ira, embora possa parecer justo às pessoas, no julgamento divino, não é ainda perfeitamente justo. Mas isso pode ser entendido mais profundamente, porque foi dito ao Senhor: ‘Dominador das tuas forças, julgas com serenidade’, Sb 12, 18. Qualquer tipo de juiz humano julga alguém que falha em seu dever com serenidade de mente, mesmo que julgue com justiça; mas ele não é capaz de imitar a justiça do julgamento divino, no qual a emoção não sabe como entrar” (p. 19).

O silêncio é também humildade: “‘Recebei com humildade a Palavra que em vós foi implantada, e que é capaz de salvar as vossas almas’, Tg 1, 21. Primeiro, Tiago ordena que se limpem o corpo e a mente dos vícios, para que se possa ser digno de receber a palavra da salvação. Pois ‘quem não se desvia primeiro do mal não é capaz de fazer o bem’, Sl 37, 27. De fato, Tiago fala qualquer impureza, tanto a do corpo quanto a da alma. A maldade, no entanto, pertence particularmente à perversidade do homem interior. Aceitai, ele diz, a palavra implantada de Deus, isto é, aceitai, aprendendo a palavra que depositamos em vossos corações ao pregarmos” (p. 19).

A Palavra que recebemos como dom perfeito é Jesus Cristo. Por isso, às vezes, o silêncio é mais proveitoso do que uma palavra que não o manifeste. Se recebemos o dom da Palavra, nossas palavras devem anunciar esse dom. Manifestar a Palavra supõe antes aceitar esse dom em nós.

 

Carlos Frederico, Professor da Universidade Católica de Petrópolis e da PUC-RIO 

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