Crisóstomo: Qual a contradição?

São João Crisóstomo, doutor da Igreja que celebramos nesta semana de setembro, nasceu em Antioquia, por volta de 349, e morreu aos 14 de setembro de 407. Grande pregador, deixou-nos um legado de obras exegéticas e homiléticas de alto valor teológico. Selecionamos aqui passagens de sua homilia VI à Carta de São Paulo aos Filipenses (2, 5-11), perícope do domingo da Exaltação da Santa Cruz.

Crisóstomo explica-nos que a humildade de Cristo não é sinal de fraqueza, mas de confiança em sua própria dignidade divina: “Atenção ao que vou proferir agora! Uma vez que muitos julgam que, sendo humildes, renunciam à própria dignidade, diminuem-se a si mesmos e são rebaixados, Paulo, para tirar este medo e mostrar não ser conveniente este modo de pensar, diz a respeito de Deus que Deus, o Filho Unigênito do Pai, tendo a condição divina, em nada menor que o Pai, a Ele igual, não considerou o ser igual a Deus como uma rapina. Apreende o significado dessa expressão! Se acaso alguém rouba e toma o que não lhe compete, não ousa pô-lo de lado, com receio de perdê-lo, de cair-lhe das mãos, e continuamente o retém. No entanto, quem possui por natureza alguma dignidade, não tem medo de descer daquela altura, porque sabe que nada disso lhe sucederá. Para empregar um exemplo, Absalão apossou-se do poder e não ousava, portanto, deixá-lo de lado. Ainda vamos dar outro exemplo. Se, contudo, os exemplos não conseguirem esclarecer totalmente, não vos aborreçais. Os exemplos são assim: deixam a maior parte para a dedução da mente. Alguém se revolta contra o rei, e usurpa o reino; ele não ousa privar-se do poder ou escondê-lo; se acaso uma vez o dissimular, logo o perde”. (João Crisóstomo. ‘Comentário às Cartas de Paulo’/3. Homilia VI. São Paulo: Paulus, 2013).

O Filho de Deus não perdeu nada de sua dignidade ao assumir a condição humana, pois sua divindade era natural e indestrutível: “Que o Filho de Deus não teve medo de descer de sua alta dignidade, porque não considerou como uma rapina a divindade, não teve medo de que alguém lhe arrebatasse a natureza, ou a dignidade. Por isso também a esta depôs, confiante de que a retomaria, e a escondeu, considerando que em nada ficaria diminuído. Por este motivo não disse Paulo: ‘Não cometeu rapina’, mas: ‘não considerou como uma rapina’. De fato, não obteve o poder por rapina, mas naturalmente; não lhe foi dado, mas era duradouro e seguro. Por esta razão não hesitou em assumir a condição de subordinado. O tirano tem medo de tirar a púrpura na guerra, o imperador, porém, o faz com grande segurança. Por quê? Porque não obteve o poder por rapina. Não é como se o houvesse roubado, e por isso não o depõe, mas o esconde porque o possui naturalmente e de forma alguma pode perdê-lo. Por conseguinte, o ser Ele igual a Deus não é rapina, porque é natureza; em consequência, esvaziou-se. Onde estão os que afirmam que Ele se sujeitou por necessidade, que se submeteu? Diz Paulo: ‘esvaziou-se a si mesmo, humilhou-se e foi obediente até a morte’! Como ‘esvaziou-se’? ‘Assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana. E sendo encontrado tal como um homem por seu aspecto’”.

Crisóstomo enfrenta as objeções de descrentes que interpretaram mal a expressão “tomou sobre si a forma de servo”, pois os descrentes procuram argumentos contra a divindade de Jesus: “Porque julgas que aquelas palavras contradizem nossas afirmações, assim também nós asseguramos que as nossas se opõem ao teu parecer. De fato, não significam: ‘como condição de servo’, nem: ‘à semelhança da condição de servo’, nem: ‘pelo aspecto assumiu a condição de servo’ e sim: ‘assumiu a condição de servo’. E então? Qual a contradição? Nenhuma contradição, absolutamente. Mas, qual a opinião insignificante e ridícula deles? Asseguram: ‘Ele assumiu a condição de servo, porque tomou uma toalha, cingiu-se e lavou os pés dos discípulos’ (cf. Jo 13,5). Isto é que se chama condição de servo? Entretanto, isto não é condição de servo, e sim obra servil. Uma coisa é obra servil e outra assumir a condição de servo. Por qual motivo não foi dito: ‘Fez uma obra de servo’, o que seria mais claro?”

A verdadeira humilhação de Cristo não consiste em gestos exteriores, mas no mistério de Deus feito homem: “O que, portanto, lhes retrucaremos? Se um homem lavou os pés de outros homens, não se aniquilou, nem se humilhou. Se é homem apenas e não considerou o ser igual a Deus como rapina, não é digno de louvor. Ao invés, se é Deus e fez-se homem, é humilhação, grande, indizível, inenarrável. Que um homem faça obras humanas, qual a humilhação? Entretanto, onde a condição divina denomina-se obra de Deus? Se, porém, era um homem comum, e por causa das obras emprega-se para ele a expressão: ‘condição divina’, por que não se diz o mesmo a respeito de Pedro, que, no entanto, fez coisas ainda maiores? Por que não dizes acerca de Paulo que ‘tinha a condição divina’? Por que Paulo não se apresentou a si mesmo qual exemplo, ele que fez inúmeras obras servis, e de nenhuma delas se subtraiu? De fato, ele declara: ‘Não pregamos a nós mesmos, mas a Jesus Cristo Senhor. Quanto a nós mesmos, apresentamo-nos como vossos servos por causa de Jesus’ (2Cor 4,5). Estas opiniões são ridículas e tolas. ‘Esvaziou-se a si mesmo.’ Como se esvaziou? – dize-me. Qual o aniquilamento? E qual a humilhação? Será porque fez milagres? Mas isto fez também Paulo, também Pedro; por conseguinte, não foi extraordinário o caso do Filho. Então, o que significa o que Paulo diz: ‘tomando a semelhança humana’? Ele tem muito do que é nosso em si, mas também muitas coisas ele não possui, como, por exemplo, não nasceu de uma união conjugal, não cometeu pecado. Estas coisas eram peculiares a Ele só, nenhum homem as possui em comum com Ele. Não era apenas o que aparecia, mas era também Deus. Parecia, na verdade, um homem, mas não era semelhante em muitos pontos, embora a carne fosse parecida. Com isso, contudo, Paulo assevera que não era simples homem; por isso, diz: ‘tomando a semelhança humana’. Nós constamos de alma e corpo; Ele, porém, tinha alma e corpo e é Deus. Por este motivo declara Paulo: ‘Tomando a semelhança’. Ao ouvires, portanto, que ‘esvaziou-se a si mesmo’, não cogites de uma mudança, transformação e desaparecimento. Diz: permanecendo o que era, tomou o que não era e, tendo se feito carne, continua sendo Deus, Verbo”.

Crisóstomo conclui enfatizando que a cruz, longe de diminuir Cristo, manifestou ainda mais sua glória: “Com isso, entretanto, a verdade brilhou mais, e fez-se mais fulgurante. Porque, apesar das maquinações dos inimigos contra sua boa fama, ela mais reluziu, mais se revelou a sua maravilha. Efetivamente, pensavam que não simplesmente o fato de ser morto, mas ser morto de tal modo faria com que fosse detestado e em grau máximo; mas nada conseguiram. Ambos os ladrões eram, na realidade, tão celerados – contudo, mais tarde converteu-se um deles – que, até na cruz, eles o injuriavam; nem a consciência dos próprios pecados, nem o suplício, nem o sofrimento de idênticos tormentos conteve seu furor; quanto às palavras de um deles, que repreendeu o outro da seguinte forma: ‘Nem sequer temes a Deus, estando nós na mesma condenação?’ (cf. Lc 23,40), mostra quão grande era sua maldade. Mas nada disso prejudicou a glória de Cristo. Afirma a Escritura: ‘Por isso Deus o sobre-exaltou grandemente e o agraciou com o Nome que é sobre todo nome’”.

Por fim, Crisóstomo observa que Paulo, depois de falar da encarnação, descreve as humilhações de Cristo sem medo de diminuir sua divindade: “Uma vez que São Paulo mencionou a carne, referiu em consequência confiadamente as suas humilhações. Enquanto não declarou que Ele assumira a condição de servo, mas discorreu acerca de sua divindade, vê como o faz de maneira sublime. Sublime, digo, à medida de suas forças, pois não se exprimiu de modo adequado à dignidade d’Ele, nem era possível: ‘Ele tinha a condição divina, e não considerou o ser igual a Deus como uma rapina’. Mas, após ter declarado que Ele se encarnou, fala intrepidamente das humilhações, confiante de que não atingia a divindade expor as humilhações recebidas pela natureza humana. ‘Por isso Deus o sobre-exaltou grandemente e o agraciou com o Nome que é sobre todo nome,’ ‘de modo que, ao nome de Jesus, se dobre todo joelho dos seres celestes, dos terrestres e dos que vivem sob a terra,’ ‘e, para a glória de Deus Pai, toda língua confesse: Jesus Cristo é o Senhor’”.

A leitura da homilia de São João Crisóstomo sobre a Carta aos Filipenses permite-nos compreender que a verdadeira contradição não reside no texto paulino, mas nas interpretações superficiais dos seus opositores. Para o Doutor da Igreja, a humilhação de Cristo não se confunde com gestos servis ou meramente exteriores, mas consiste no mistério da encarnação: o Verbo eterno que, permanecendo Deus, assumiu a forma humana. Assim, a humildade de Cristo não representa uma perda ou diminuição da sua divindade, mas uma expressão suprema de liberdade e amor, revelando uma dignidade que não teme rebaixar-se porque sabe que não lhe pode ser retirada.

Contrariamente às objeções dos descrentes, Crisóstomo demonstra que a encarnação não introduz contradição: Aquele que é Deus por natureza pode esvaziar-se de si mesmo sem deixar de ser quem é. O aparente paradoxo entre a majestade divina e a humilhação da cruz transforma-se assim numa manifestação de glória. É precisamente na entrega e na aniquilação voluntária que Cristo se revela verdadeiramente Senhor, exaltado pelo Pai e proclamado como Senhor por toda a criação pelo Espírito Santo. A abnegação de Cristo revela a coerência mais profunda da fé cristã: a glória de Deus se manifesta na humildade, e a cruz, longe de macular o Filho, torna-se o trono onde sua divindade brilha com maior esplendor.

 

Carlos Frederico Calvet da Silveira

Professor da Universidade Católica de Petrópolis e do Seminário de São José, Rio.

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