Estamos, em nossa apresentação da Encíclica Dilexit nos, do Papa Francisco, recém-publicada, agora, no Capítulo 4, cujo título soa Amor que dá de beber.
Logo no primeiro parágrafo desta parte, o Santo Padre Papa Francisco traça o seu objetivo: “Voltemos à Sagrada Escritura, aos textos inspirados que são o lugar principal onde encontramos a Revelação. Nelas e na Tradição viva da Igreja está contido o que o próprio Senhor nos quis dizer para toda a história. A partir da leitura de textos do Antigo e do Novo Testamento, recolheremos alguns dos efeitos da Palavra no longo caminho espiritual do Povo de Deus” (n. 92). Dito isto, o Papa passa, então, às citações. Aqui mencionarei sem comentar, supondo, como também em outros textos desta série, que tais passagens já são conhecidas ou ao menos podem ser consultadas com facilidade.
Do lado aberto de Cristo na cruz saiu sangue e água. Ora, a Escritura mostra a abundância de água vivificante em várias de suas passagens: cf. Is 12,3; Ez 36,25-26; 47,7.9 (cf. n. 93). E segue: A festa judaica das Tendas muito se ligava ao elemento água, ofertada a Deus em torno do altar (cf. n. 94); os tempos messiânicos prenunciados no Antigo Testamento seriam uma fonte aberta para o povo: cf. Zc 12,10; 13,1. Esta profecia se cumpriu em Jesus Cristo (cf. Jo 19,34; Jo 19,37). Ele é a água viva (cf. Jo 7,37-38.39), logo, quem d’Ele se aproxima e O contempla, pode beber da água viva (cf. Ap 1,7; 22,17); ver n. 95-98. Em todo este contexto, “o lado trespassado é ao mesmo tempo a sede do amor, um amor que Deus declarou ao seu povo com tantas palavras diferentes que vale a pena recordar” (n. 99). E seguem-se mais passagens bíblicas comprobatórias: cf. Is 43,4; 49,15-16; 54,10; Jr 31,3; Sf 3,17. Já o profeta Oseias chega a falar até do coração de Deus: cf. 11,4.8-9 (cf. n. 100).
Por tudo isto, o Santo Padre pôde fechar estas reflexões com estas belas palavras: “No Coração trespassado de Cristo estão concentradas, escritas na carne, todas as expressões de amor das Escrituras. Não se trata de um amor simplesmente declarado, mas o seu lado aberto é fonte de vida para o amado; é aquela fonte que sacia a sede do seu povo. Como ensinou São João Paulo II, ‘os elementos essenciais desta devoção pertencem também de modo permanente à espiritualidade da Igreja ao longo da sua história; porque desde o princípio a Igreja elevou o seu olhar para o Coração de Cristo trespassado na Cruz’ [Carta ao Prepósito-Geral da Companhia de Jesus, Paray-le-Monial (5 de outubro de 1986): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 12 de outubro de 1986), 9]” (n. 101).
Fechada a busca pelos textos da Sagrada Escritura, o Sumo Pontífice volta-se para a Tradição da Igreja, na palavra de seus padres (não necessariamente sacerdotes, mas no sentido de “Pais”: homens que nos sete primeiros séculos ajudaram na formulação da reta fé do Povo de Deus). Citam-se: As Atas dos mártires de Lião; Rufino de Aquileia; Justino; Novaciano; Ambrósio, Agostinho de Hipona, Jerônimo, Bernardo de Claraval (que, embora tenha vivido no século XII, mereceu o título de Padre da Igreja, pois, no seu tempo, fez reviver a doutrina daqueles santos homens); cf. n. 102. Diz textualmente a Encíclica: “Santo Agostinho abriu o caminho para a devoção ao Sagrado Coração como lugar de encontro pessoal com o Senhor. Ou seja, para ele o lado de Cristo não é só fonte de graça e de sacramentos, mas personaliza-o, apresentando-o como símbolo da união íntima com Cristo, como lugar de um encontro amoroso. É aí que reside a origem da sabedoria mais preciosa, que é conhecê-Lo. Com efeito, Agostinho escreve que João, o amado, quando inclinou a sua cabeça sobre o peito de Jesus, durante a última ceia, aproximou-se do lugar secreto da sabedoria [cf. Tract. in Joann. Ev. 61, 6: PL 35, 1801]. Não se trata de uma simples contemplação intelectual de uma verdade teológica. São Jerônimo explica que uma pessoa capaz de contemplar ‘não retira das correntes de água nenhum deleite, mas bebe a água viva do lado do Senhor’ [Epist. III, ad Ruffinum, 4: PL 22, 334]”. (n. 103). Dando um salto na história, o Santo Padre lembra-se de outro cisterciense – além de Bernardo de Claraval, o maior místico entre eles – que é Guilherme de Saint-Thierry, e, em seguida, menciona São Boaventura, franciscano (cf. n. 104-108).
Quer, depois da Escritura e da Tradição, o Papa tratar da expansão que houve, na Igreja, da devoção ao Sagrado Coração de Jesus, sobretudo no meio monástico (n. 109 e 112) e feminino em geral (110). Para mim, as Ordens cisterciense e cartuxa tiveram aí um papel destacável. Santa Gertrudes de Helfta, monja cisterciense, é citada: em uma visão, em determinado momento de oração, “reclinou a cabeça sobre o Coração de Cristo e escutou os seus batimentos. Num diálogo com São João Evangelista, ela pergunta-lhe por que razão, no seu Evangelho, não fala do que viveu quando teve a mesma experiência. Gertrudes conclui que ‘a doçura destes batimentos foi reservada aos tempos modernos, para que, ao escutá-los, o mundo envelhecido e morno possa renovar-se no amor de Deus’ [S. Gertrudes de Helfta, Legatus divinae pietatis, IV, 4, 4: SCh, 255, 66 – Esta obra completa está traduzida para o português, em 5 volumes, com o título Mensagem do amor de Deus, Artpress, São Paulo – acréscimo meu]” (n. 110). Já “os monges cartuxos, encorajados sobretudo por Ludolfo da Saxônia, encontraram na devoção ao Sagrado Coração um meio de encher de afeto e proximidade a sua relação com Jesus Cristo. Quem entra pela ferida do seu Coração é abrasado em chamas de afeto” (n. 111 – Parte das reflexões de Ludolfo estão na Antologia de autores cartuxos, da Cultor de Livros, São Paulo). Cabe destaque a São João Eudes que, com aprovação do bispo de Rennes, começou a celebrar aí a festa do Coração Adorável de Nosso Senhor Jesus Cristo (cf. n. 113).
Passando aos tempos modernos, o Papa cita longamente São Francisco de Sales: “Podemos ver no pensamento deste santo doutor como, face a uma moral rigorista ou a uma religiosidade de mero cumprimento de obrigações, o Coração de Cristo lhe aparece como um apelo à plena confiança na ação misteriosa da sua graça” (n. 114). E, com vistas à santificação na vida cotidiana, propõe que esta devoção seja vivida, com fervor, no ambiente comum a cada um (cf. n. 117). Ora, “foi sob a influência salutar da espiritualidade de São Francisco de Sales que tiveram lugar os acontecimentos de Paray-le-Monial, no final do século XVII. Santa Margarida Maria Alacoque relatou importantes aparições entre o fim de dezembro de 1673 e junho de 1675. É fundamental a declaração de amor que se destaca na primeira grande aparição. Jesus diz: ‘O meu divino Coração está tão abrasado de amor para com os homens, e em particular para contigo, que, não podendo já conter em si as chamas da sua ardente caridade, precisa derramá-las por teu meio, e manifestar-se lhes para os enriquecer de seus preciosos tesouros, que eu te mostro a ti’ [S. Margarida Maria de Alacoque, Autobiografia, n. 53 (Braga, 1984), 57-58]” (n. 119). E: “Santa Margarida Maria resume tudo isto de uma forma poderosa e fervorosa: ‘Ali me descobriu as maravilhas do seu amor e os segredos insondáveis do seu Sagrado Coração, que sempre me tinha conservado escondidos até àquele momento em que nos abriu pela primeira vez, mas de modo tão real e sensível que me não deixou lugar a nenhuma dúvida’ [Ibid., 57]. Nas declarações seguintes, reafirma-se a beleza desta mensagem: ‘Ele me mostrou as maravilhas inexplicáveis do seu puro amor, e o excesso a que ele tinha chegado em amar os homens’ [Ibid., n. 55, o. c., 60.]” (n. 120). Ainda que não precisemos, segundo lembra o Santo Padre, aceitar todos os detalhes desta revelação particular, vemo-nos diante de um convite forte ao amor a Jesus (cf. n. 121-124), como ela mesma nos transmitiu apoiada por São Cláudio de La Colombière (cf. n. 125-128).
Ainda nos fins do século XIX e início do XX, dois grandes santos místicos – que serão melhor apresentados no próximo artigo desta série – muito contribuíram para entender a devoção ao Sagrado Coração de Jesus como uma relação pessoal de amor sem devocionismos intimistas ou demasiada confiança apenas no esforço humano, mas uma entrega sincera de coração a Coração. Falamos de São Charles de Foucauld e Santa Teresinha do Menino Jesus (cf. n. 129-142, parágrafos que valem a pena meditar na íntegra). Pois bem, enquanto jesuíta, portanto, bom conhecedor da Companhia de Jesus, o Papa recorda, em diversos parágrafos (cf. n. 143-147), que também Santo Inácio de Loyola propõe aos que fazem seus Exercícios Espirituais entrarem no lado aberto de Cristo e terem aí um diálogo de coração a Coração (cf. n. 144).
Vendo-a como devoção útil a tantos santos de várias épocas, é preciso cultivá-la retamente com a Igreja dos nossos dias sem desvios, mas com aceitação de pontos que para alguns, imbuídos de um espírito crítico moderno ou até modernista, poderiam estar fora de moda, mas não estão. Daí, dentre as várias coisas belas ditas pelo Santo Padre, duas chamaram-me particularmente a atenção. A primeira é esta: “O desejo inevitável de consolar Cristo, que surge da dor de contemplar o que Ele sofreu por nós, alimenta-se também do reconhecimento sincero das nossas escravidões, dos nossos apegos, da nossa falta de alegria na fé, das nossas buscas vãs e, para além dos pecados concretos, da falta de correspondência do nosso coração ao seu amor e ao seu projeto. É uma experiência que nos purifica, porque o amor precisa da purificação das lágrimas que, no final, nos deixam mais sedentos de Deus e menos obcecados por nós próprios” (n. 158 – Ponto caro à tradição monástica e que o Beato Columba Marmion, OSB, bem reflete em seu livro Jesus Cristo ideal do monge. Cultor de Livros, São Paulo). A segunda é a que segue: “Peço, portanto, que ninguém ridicularize as expressões de fervor devoto do santo povo fiel de Deus, que na sua piedade popular procura consolar Cristo. E convido cada um a perguntar-se se não há mais racionalidade, mais verdade e mais sabedoria em certas manifestações desse amor que procura consolar o Senhor do que nos atos de amor frios, distantes, calculados e mínimos de que somos capazes aqueles que julgamos possuir uma fé mais reflexiva, cultivada e madura” (n. 160).
O apelo final do Santo Padre neste capítulo é para que quem se sente consolado por Deus também vá e console seu irmão: “Mas, num certo momento desta contemplação do coração que crê, deve ressoar aquele dramático apelo do Senhor: ‘Consolai, consolai o meu povo’ (Is 40,1). E recordamos as palavras de São Paulo, que nos lembra que Deus nos consola ‘para que também nós possamos consolar aqueles que estão em qualquer tribulação, mediante a consolação que nós mesmos recebemos de Deus’ (2Cor 1,4)” (cf. n. 162).
Desejo, neste final do quarto artigo, esclarecer uma dúvida que – embora não tão relevante – pode surgir e, por conseguinte, perturbar o pensamento de algumas pessoas. É a seguinte: Por que o Papa escolheu como título da sua nova encíclica a expressão “amor humano e divino do Coração de Jesus” e não o contrário (divino e humano), uma vez que, desde toda a eternidade, Cristo é Deus (cf. Jo 1,1; Hb 13,8) e só assumiu a nossa humanidade, na plenitude dos tempos, por meio de uma mulher (cf. Gl 4,4): Nossa Senhora? – A resposta não é complexa. Com efeito, há dois modos de fazer Cristologia (= estudo de Cristo): de modo descendente, isto é, partindo de Sua divindade para a sua humanidade, como faz o início do Evangelho de São João, ou de modo ascendente, ou seja, partindo de Sua humanidade para a divindade, como faz Paulo em Fl 2,6-11 (cf. Dom Estêvão Bettencourt, OSB. Curso de Cristologia, Mater Ecclesiae, 2018, pp. 23-26). Isto muito pode ajudar os hesitantes!
Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist.
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ