O Coral Canto da Rua transforma dor em esperança e devolve dignidade a quem um dia foi invisível

“Cada pessoa que hoje está em situação de rua, ela teve uma família, um passado e planeja também o futuro. Muitas vezes pensamos que eles são pessoas diferentes. Não são. Eles têm as mesmas alegrias, dores e também carregam esperanças que nem nós.”

O testemunho de Tânia Ramos, assistente social do Vicariato para a Caridade Social da Arquidiocese do Rio de Janeiro, condensa o sentido de um trabalho que uniu fé, cultura e cidadania e que, hoje, se tornou referência de acolhimento humanizado por meio da arte: o Coral Canto da Rua. Com ensaios semanais na Catedral Metropolitana de São Sebastião, no Centro, o grupo nasceu do encontro entre uma demanda concreta de dignidade — o direito de ser visto, ouvido e respeitado — e uma pedagogia social que utiliza a música como instrumento de transformação. Mais do que um projeto artístico, trata-se de um espaço de convivência, escuta e formação, onde pessoas em situação de rua cantam, tocam, conversam sobre direitos, organizam-se, apresentam-se em igrejas, praças, universidades e santuários e, sobretudo, reconquistam laços, autonomia e futuro. “A rua estava cantando”, lembram os participantes sobre a escolha do nome, e essa imagem — a rua que canta — virou método, horizonte e compromisso.

Segundo Tânia Ramos, que também faz parte da Coordenação Nacional do Povo da Rua e é membro titular do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua (Ciamp-Rua Nacional), a história do Coral Canto da Rua começa nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016. Naquele período, uma proposta inspirada em Londres chegou à cidade com um objetivo claro: que a população em situação de rua não se tornasse invisível no evento que mobilizaria olhares do mundo inteiro. “O coral surge com a questão das Olimpíadas. Era um projeto que acontecia em Londres, então eles vieram para que a população em situação de rua não se tornasse invisível”, recorda. Duas lideranças brasileiras — Maralice, do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, e Adilson Pires, então secretário de Assistência Social do Rio de Janeiro — conheceram a experiência inglesa e a apresentaram no Rio. A Arquidiocese do Rio, que já atuava com esse público na Catedral, foi convidada a se somar. “Dom Joel Portella Amado, na época ainda pároco na Catedral, gostou muito da ideia. A proposta era trabalhar com toda a população que estava nas calçadas, dando visibilidade a quem a gente já atendia no domingo com o café da manhã.”

Naquele primeiro momento, as ações se desdobraram em dois eixos: um trabalho nos abrigos municipais, coordenado pelo maestro José Ricardo, e outro na Catedral, junto a quem permanecia nas ruas do entorno. O projeto inglês chamava-se “Uma Só Voz” e, com ele, o grupo viveu experiências que ficaram na memória: “No período das Olimpíadas, nós subimos ao Cristo Redentor com a população de rua para receber a tocha. O coral estava lá cantando às cinco horas da manhã”, conta Tânia. Encerrado o contrato com Londres — inicialmente previsto para durar um ano —, a semente germinou em duas frentes: o “Uma Só Voz”, que passou a se reunir no Museu do Amanhã, e o “Canto da Rua”, nascido e abrigado na Catedral.

A escolha do novo nome se deu numa assembleia com ampla participação dos integrantes. “Foi muito interessante porque eles discutiram esse nome. A rua estava cantando, saindo do lugar onde estava para ir cantar. Eles saem do momento em que estão na rua para que as pessoas escutem a voz deles”, relata Tânia. A decisão, construída coletivamente, consolidou uma identidade: o coral que representa quem vive — ou viveu — nas ruas e que canta dores, alegrias e esperanças. “O coral passa a ser um espaço de troca, de crescimento, um espaço de redução de danos”, explica. A noção de redução de danos, típica das políticas de atenção em saúde e assistência, é aqui traduzida pela força concreta da arte. “A música tira a pessoa do lugar onde ela está. Lá dentro não é permitido uso de droga ou álcool. Eles vão para cantar, para viver aquele momento.”

Entre tantas histórias, Tânia lembra a de um participante que usava crack e, pouco a pouco, redefiniu sua semana por causa do ensaio. “Ele dizia: aos domingos eu já não usava mais a droga, porque eu tinha que me preparar para terça-feira, porque segunda eu tinha que estar sóbrio.” É nesse ponto que a música revela sua dimensão terapêutica e educativa: reorganiza rotinas, cria metas, abre portas para o cuidado. “Hoje, eles não apenas cantam; também tocam. Temos quem toque cavaquinho e pandeiro. Eles saem do lugar do acompanhamento e se tornam atores principais”, descreve Tânia, com satisfação. O repertório também reflete essa pluralidade: canções populares — samba, “Andança”, “Das três raças”, “Romaria” — e repertório litúrgico para missas e celebrações, além de “Anunciação”, muito presente no período do Natal.

O ciclo semanal do Canto da Rua é simples e profundo. “Os ensaios são toda sexta-feira, de 9h às 13h, na Catedral, e terminam com o almoço”, detalha Tânia. A manhã combina oficina de canto com o maestro Vítor Gomes (com apoio recorrente de Jonathan), roda de conversa sobre alegrias, angústias e encaminhamentos, e curso de percussão com a professora Raquel, da UFRJ. Volta e meia, o tenor Robson, do Theatro Municipal, canta com o grupo. Antes dele, Osvaldo — “um maestro que usava violão” — deu os primeiros passos até adoecer; depois veio Vítor, o atual. É uma rede de apoios que se ativa conforme a necessidade, com uma constante: o ensaio não falta.

As apresentações multiplicaram a visibilidade e o pertencimento. O coral canta em conferências e semanas acadêmicas, participa de missas e eventos diocesanos e se apresentou diversas vezes no Santuário do Cristo Redentor. A Romaria Arquidiocesana a Aparecida — e também a Romaria dos Trabalhadores, em 7 de setembro — tornou-se uma tradição muito querida. “Eles ficam encantados ao cantar em Aparecida, naquele belíssimo coro. Agora mesmo, no Dia Mundial dos Pobres, são eles que vão cantar na missa”, conta Tânia. Universidades também os recebem, como a PUC-Rio, onde, em atividades comunitárias, o coral se apresenta e dialoga com estudantes.

As histórias pessoais, entrelaçadas com a trajetória do grupo, dão medida do impacto. Um compositor conhecido na cidade, em situação de rua, escreveu um samba para o Cristo Redentor: “A minha casa fica lá no alto do morro… e de longe eu peço socorro para o meu Cristo Redentor.” O filho de um grande sambista, ainda em situação de rua, também integra o coral. Há relatos de superação que Tânia carrega como bálsamo: “Vale a pena você encontrar uma pessoa que viveu na rua e ouvir: ‘Hoje eu não estou mais na rua; hoje eu tenho minha casa; hoje eu estou fazendo faculdade’.” Um deles lhe “deu muito trabalho” e, após recaídas, retomou os estudos, conseguiu trabalho num hotel, formou-se em TI, casou-se e convidou Tânia para madrinha. “Ele disse: ‘Eu traí as pessoas que mais gostaram de mim’, caiu em si e recomeçou.” Outra pessoa, por sua vez, após a emoção da primeira apresentação no Theatro Municipal, decidiu abandonar o consumo de drogas; concluiu o ensino médio no Colégio Santo Inácio e hoje projeta a faculdade. São vidas que, reatando vínculos e oportunidades, reencantam o cotidiano de quem acompanha o processo.

O Canto da Rua também enfrenta desafios recorrentes. Sem financiamento contínuo, o projeto se sustenta com a ajuda do Vicariato para a Caridade Social, doações de amigos e campanhas pontuais. “Antes havia projeto que vinha de fora. Hoje não temos mais. O Vicariato nos ajuda muito”, afirma Tânia. Havia um convênio com a Igreja Católica alemã Adveniat que foi concluído e há expectativas de renovação. Enquanto isso, a criatividade supre as lacunas: instrumentos chegam por doação, transporte e alimentação são garantidos pelo Vicariato para a Caridade Social. “Nós nunca ficamos um dia sem ter o almoço e o café da manhã deles”, enfatiza.

A perseverança dos integrantes é outra chave de leitura. “Nós não temos tanta rotatividade. Temos pessoas da primeira reunião até hoje. E a maioria dos que perseveram já saiu da rua”, explica. Para apoiar essas transições, o grupo mantém uma campanha de cestas básicas destinada exclusivamente a quem comprova ter deixado a rua. “Por mês, entregamos de 15 a 20 cestas para ajudar a manter as pessoas em suas casas”, diz Tânia. A política do cuidado, aqui, acompanha o pós-rua: aluguel de quarto, reorganização financeira, retomada de vínculos. E reequilibra percepções: “Nem todo mundo que está na rua usa droga. Nem todo mundo usa álcool. Muitas vezes a droga e o álcool vêm como consequência.” Entre os fatores que empurram às ruas, Tânia lista desemprego, falta de moradia e violência familiar, “muito antes das drogas”.

O coral se tornou também um espaço de incidência cívica. Rodas de conversa sobre direitos sociais, civis e humanos, oficinas de artesanato, orientação para benefícios (como o BPC/Loas para idosos) e convivência organizada fazem parte da rotina. “O projeto cria um ambiente seguro e acolhedor, no qual os participantes têm a oportunidade de expressar-se, fortalecer vínculos e ampliar perspectivas de vida, com atendimentos conduzidos de forma respeitosa e humanizada”, sintetiza o material de referência. Na linguagem institucional, isso se expressa assim: “O Coral Canto da Rua tem por objetivo oferecer um espaço de acolhimento e transformação para pessoas em situação de rua, utilizando a música como instrumento para promover a dignidade humana, estimular a autoestima, fortalecer vínculos sociais e ampliar as perspectivas de vida, sempre pautado em atendimento respeitoso e humanizado.” É a tradução técnica de algo que, na prática, Tânia descreve com simplicidade: “Eu me abasteço com o encontro que tenho com eles.”

Dessa dinâmica comunitária nasceu um pedido concreto, que moldou a política de cuidado no território da Catedral. Na primeira Semana Arquidiocesana do Dia Mundial dos Pobres, os integrantes do coral entregaram uma carta ao arcebispo Dom Orani João Tempesta: queriam banheiros com chuveiros na Catedral, “para se apresentarem cheirosos, com dignidade”, diz Tânia. A partir dali, a Arquidiocese do Rio articulou projeto com o Escritório Modelo de Arquitetura da PUC-Rio e outras áreas técnicas. Entre epidemia, luto e replanejamento, a obra seguiu. O espaço inclui chuveiros, sala para assistente social, barbearia, atendimento psicológico e área de convivência — um núcleo de cuidado integrado para a população em situação de rua. O desenho foi enriquecido por sugestões de Dom Orani e do pároco, cônego Cláudio dos Santos: “A barbearia foi ideia deles. ‘Como é que vocês vão fazer o banheiro sem ter onde cortar o cabelo?’”

A inauguração dos banheiros é mais do que obra física: representa a capacidade do coral de pautar políticas, articular parcerias e traduzir “gestos concretos” em estruturas permanentes. “A ideia nasceu quando estavam acontecendo as Escolas de Perdão e Reconciliação. Eles precisavam apresentar um gesto concreto: ‘A água é vida. A água mata a sede e nos deixa limpos. É o banho. Aqui a gente não tem.’” Se antes muitos tomavam banho no Aterro do Flamengo para irem às aulas, agora haverá uma resposta estável dentro da Catedral — um passo essencial para “se preparar para a vida”, como repete Tânia. A meta, adiante, é ampliar frentes de emprego e renda, capacitação e defesa de direitos. “Porque não basta apenas dar o banheiro. A gente quer que seja um espaço onde sejam acolhidos não só para o banho, mas para a vida também.”

O envolvimento pessoal de Tânia com o Canto da Rua ajuda a entender a persistência do projeto. “Meu envolvimento vem de uma carta, ainda no tempo de Dom Eugênio de Araújo Sales, no Natal, pedindo às paróquias que abrissem as portas para acolher a população de rua. Eu pensei: posso me envolver com isso? Posso acompanhar o povo da rua que já foi trabalhador?” Vieram mais de 25 anos de missão. “É cansativo… muitas vezes desesperançoso… mas vale a pena.” A ponto de escolher celebrar o aniversário com o grupo: “Eu me sinto muito agraciada. O encontro de sexta-feira me abastece. Ali eu refaço toda a minha caminhada.”

O método do Canto da Rua, desenvolvido a muitas mãos, guarda coerência com a visão do Vicariato para a Caridade Social: aproximação respeitosa, construção de confiança, portas abertas, encaminhamentos responsáveis, atenção aos ciclos de recaída e recomeço, valorização de talentos. “Às vezes é mais fácil pedir um prato de comida do que uma vaga de emprego”, reconhece Tânia. Ainda assim, portas se abrem: universidades para apresentações, igrejas para celebrações, santuários para romarias, órgãos públicos para fóruns e conferências, pessoas amigas para doações. O coro, por sua vez, devolve à cidade a beleza de sua voz plural — a rua que canta —, lembrando que, por trás de cada rosto, há história, planos e vontade de recomeçar.

Ao longo dos anos, a experiência se consolidou como política de “redução de danos” e de promoção de vínculos. O cuidado com quem deixa a rua — cestas, orientação para benefícios, apoio nas crises — reduz retornos e dá fôlego aos novos projetos de vida. O cuidado com quem ainda está na rua — escuta, rotina, ensaio, apresentação, convivência — devolve pertencimento e autoestima. E o cuidado com o território — banheiros, barbearia, atendimento social e psicológico — cria um ciclo virtuoso de dignidade, a partir de um espaço sagrado que espelha sua vocação social. “Todos juntos, em prol de uma causa que a gente acredita”, resume Tânia, ao mencionar a comunhão entre Catedral, Vicariato, PUC-Rio e apoiadores.

Se a música organiza tempos e afetos, também organiza cidadania. O Canto da Rua promove rodas de conversa sobre acesso à saúde, igualdade, liberdade e proteção, oficinas de artesanato, debates sobre direitos e deveres e incentiva a incidência política dos participantes, ocupando espaços de discussão pública. Ao mesmo tempo, a oficina de percussão, os ensaios com órgão e violão, as apresentações com repertório diverso e as vivências em grandes templos e praças costuram uma narrativa de presença: os que eram invisíveis passam a ser vistos; os que não eram ouvidos cantam. “Eles estão cantando as suas dores, as suas alegrias, as suas esperanças”, diz Tânia. E, nesse canto, a cidade se reconhece.

O Canto da Rua é, assim, um laboratório de humanidade que confirma a potência transformadora da arte quando unida à proximidade pastoral e à técnica social. “A gente se envolve, não só com eles, mas com tudo que está ao redor”, reconhece Tânia. O envolvimento traz responsabilidades: garantir almoço e café da manhã, viabilizar transporte para apresentações, captar e cuidar de instrumentos, assegurar a continuidade pedagógica, mediar conflitos, celebrar conquistas, atravessar lutos. Traz, sobretudo, esperança. “Eu sempre digo para eles: eu não desisto de nenhum de vocês.”

Numa cidade acostumada ao ruído, há um som novo que insiste, toda sexta-feira, na nave da Catedral: vozes que se afinam para transformar a própria vida e a vida ao redor. O Coral Canto da Rua lembra que a dignidade tem timbre, ritmo e letra. E que, quando a rua canta, a cidade escuta — e muda. “A rua estava cantando”, repetem, como quem assina um manifesto. O manifesto pede o óbvio que ainda falta: água, banho, escuta, trabalho, moradia, respeito. Pede também aquilo que já floresceu: rede, rotina, repertório, palco, diploma, aliança, novas famílias.

O projeto, afinal, é isso: um espaço de acolhimento e transformação que usa a música para promover dignidade, autoestima, vínculos e horizontes; encontros semanais com canto, conversa, artesanato, percussão e apresentação; incentivo à incidência política; metodologia que resgata a autoestima e renova a vida por meio da arte; atendimentos respeitosos e humanizados; e uma convicção: ninguém é invisível. “Cada pessoa que hoje está em situação de rua, ela teve uma família, um passado e planeja também o futuro”, volta a dizer Tânia. É por isso — e para isso — que a rua canta. E quando canta, convoca a cidade a escutar.

 

Carlos Moioli

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