Certamente uma das mais célebres e profundas parábolas de Jesus Cristo é objeto da homilia 34 de Orígenes, tomada de suas ‘Homílias sobre Lucas’. Trata-se da parábola do bom samaritano inserida na passagem de Lc 10, 25-37. A lei do amor ao próximo é recíproca, pois justamente é lei do amor, de modo que o próximo é aquele que necessita do amor, mas também aquele que oferece amor. Mas é preciso agir e e vivificar a Lei pelas ações.
A provocação do mestre da Lei judaica ao Mestre do Evangelho granjeou-nos a maior síntese da fé em toda a Escritura: “Enquanto na Lei há muitos preceitos, no Evangelho, o Salvador estabeleceu apenas dois. Como um atalho, eles conduzem à vida eterna aqueles que os obedecem. A esse respeito, o mestre da Lei questionava Jesus: ‘Mestre, que devo fazer para receber em herança a vida eterna?’, Lc 10, 25. Esta passagem do Evangelho, segundo Lucas, foi lida para ti hoje. Jesus respondeu a isso da seguinte forma: ‘Que está escrito na Lei? Como lês isso?’ O mestre da Lei respondeu: ‘Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração e com toda a tua alma, com toda a tua força e com toda a tua inteligência; e ao teu próximo como a ti mesmo!’ Então Jesus disse: ‘Tu respondeste corretamente. Faze isso e viverás’. Sem dúvida alguma, o mestre da Lei questionava Jesus sobre a vida eterna, e como a explicava o Salvador. Ao mesmo tempo, um preceito da Lei claramente ensina-nos a amar a Deus. No Deuteronômio, diz a Lei: ‘Israel, o Senhor teu Deus é um só Deus’ e ‘Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração’, Dt 6, 5, e assim por diante; e ‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’, Lv 19, 18. O Salvador prestou testemunho desses mandamentos e disse: ‘Desses dois mandamentos dependem toda a Lei e os profetas’, Mt 22, 40” (Orígenes. ‘Homilies on Luke’. By Joseph T. Lienhard. Washington: The Catholic University Press, 2009, p. 137, tradução do autor).
Contudo, depois dessa explanação, Jesus precisa ainda contar uma parábola para que as palavras da Lei se tornem ações, ou seja, tomem vida: “Mas o mestre da Lei ‘queria justificar-se’ e mostrar que ninguém era seu próximo. Ele disse: ‘E quem é meu próximo?’ O Senhor contou-lhe uma parábola: ‘Certo homem que descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos de assaltantes’, e assim por diante, Lc 10, 30-35. E ele ensina que o homem que descia não era próximo de ninguém, exceto daquele que queria guardar os mandamentos e preparar-se para ser próximo de todo aquele que precisa de ajuda. Pois é isto que a parábola encobre, como se lê ao final: ‘Qual dos três foi o próximo do homem que caiu nas mãos dos assaltantes?’ Nem o sacerdote nem o Levita eram seu próximo, contudo, como o próprio mestre da Lei respondeu, ‘aquele que usou de misericórdia’ era seu próximo. E o Salvador completa: ‘Vai e faze a mesma coisa’” (p. 137-138).
Segundo Orígenes, uma interpretação alegórica dessa parábola enriquece profundamente a nossa fé: “Um dos anciãos quis interpretar a parábola da seguinte forma. O homem que estava caído é Adão. Jerusalém é o paraíso e Jericó é o mundo. Os ladrões são potências hostis. O sacerdote é a Lei, o levita são os profetas e o samaritano é Cristo. As feridas são desobediência, a besta é o corpo do Senhor, o pandochium (isto é, a pensão), que aceita todos os que desejam entrar’, é a Igreja. Em seguida, dois denários significam o Pai e o Filho. O dono da pensão é o chefe da Igreja, a quem seu cuidado foi confiado. E o fato de o samaritano prometer que vai retornar representa a segunda vinda do Salvador” (p. 138).
Os assaltantes são mais violentos e indignos do que os ladrões. Cristo também sofreu nas mãos de ladrões e assaltantes: “Tudo isso foi dito de forma razoável e bela. Mas não devemos pensar que se aplica a todos os homens. Pois nem todos homens ‘descem de Jerusalém para Jericó’, nem todos habitam neste mundo presente por essa razão, mesmo que aquele que ‘foi enviado por causa das ovelhas perdidas da casa de Israel’ desceu assim. De modo que, o homem que ‘descia de Jerusalém para Jericó’ ‘caiu nas mãos de assaltantes’ porque ele mesmo queria cair. Mas os ladrões não são outros senão aqueles de quem o Salvador diz: ‘Todos os que vieram antes de mim eram ladrões e salteadores’, Jo 10, 8. Porém, ainda assim, Ele não cai nas mãos de ladrões, mas de assaltantes, que são muito piores do que ladrões. Ele caiu entre eles quando estava descendo de Jerusalém. ‘Eles o roubaram e lhe infligiram golpes’, Lc 10, 30. Quais são os golpes? Quais são as feridas que ferem um homem? São os vícios e os pecados” (p. 138-139).
O sacerdote e o levita são como aqueles a quem Jesus se referiu no Evangelho de João, ‘todos os que vieram antes de mim eram ladrões e salteadores’, Jo 10, 8: “Então os assaltantes, que o haviam despido e ferido, não ajudam o homem nu, mas voltam a golpeá-lo e assim o deixam. Portanto, a Escritura diz: ‘Estes arrancaram-lhe tudo, espancaram-no, e foram-se embora deixando-o quase morto’, não morto, mas ‘semimorto’. Mas ocorreu que, primeiro um sacerdote, e depois um levita, desciam pelo mesmo caminho. Talvez tivessem feito algum bem a outros homens, mas não a este homem, que havia descido ‘de Jerusalém a Jericó’. Pois, o sacerdote o viu, e peno que ele representa a Lei. E o levita o viu, isto é, na minha opinião, a palavra profética. Quando eles o viram, passaram e o deixaram. A providência foi guardando o homem meio morto para aquele que era mais forte que a Lei e os profetas, nomeadamente para o samaritano. O nome significa ‘guardião’. Este é aquele que ‘nem dorme nem dormita enquanto guarda Israel’, Sl 121, 4. Por causa do homem semimorto, este samaritano não continuou sua descida ‘de Jerusalém para Jericó’, como o sacerdote e o levita fizeram. Ou, se desceu, desceu para resgatar e cuidar do moribundo. Os judeus lhe haviam dito: ‘és um samaritano e tens um demônio’, Jo 8, 48. Embora negasse ter um demônio, ele não estava disposto a negar que era um samaritano, pois sabia que era um guardião” (p. 139).
A compaixão do samaritano, a empatia com o semelhante é que o aproxima do ferido: “Quando o samaritano chegou ao homem semimorto e o viu rolando em seu próprio sangue, teve pena dele. Então aproximou-se dele para se tornar seu próximo: ‘e fez curativos, derramando óleo e vinho nas feridas’, Lc 10, 34”(p. 139-140).
Essa compaixão é a misericórdia de Deus que nos acolhe na Igreja e na vida futura para sempre: “Jesus chama todos à Igreja quando diz: ‘Vinde a mim, todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos darei descanso, Mt 11, 28. (…) Sem dúvida, o estalajadeiro era o anjo do Igreja, a quem o samaritano ordenou que cuidasse diligentemente do homem e o trouxesse de volta à saúde. (…) Mostrou que era o próximo do homem mais por ação do que por palavras. De acordo com a passagem que diz: ‘Sede meus imitadores, como eu também sou de Cristo’ é possível imitar a Cristo e ter pena daqueles que ‘caíram nas mãos de assaltantes’. Podemos ir até eles, curar suas feridas, derramar azeite e vinho, e acomodá-los em nossos próprios animais e suportar seus fardos. O Filho de Deus nos encoraja a fazer coisas como estas. Ele fala não tanto para o mestre da Lei, mas a nós e a todos os homens quando ele diz: ‘Vai e faze a mesma coisa’” (p. 140-141).
Em síntese, o ‘pandochium’, citado acima, é palavra latinizada do termo grego ‘pandocheîon’, nada mais é do que uma estalagem, uma pensão, uma hospedaria. Porém, Orígenes serve-se desta imagem para indicar a Igreja como casa de todos, lugar para todos, sobretudo os excluídos, lugar onde todos se tornam próximos. Imagem plenamente aplicável ao tema do amor ao próximo, que implica uma espécie de reconhecimento do outro. O samaritano, excluído do grupo dos eleitos, torna-se o próximo. Mas o que o evangelista enfatiza aqui, segundo Orígenes, é o modo pelo qual aquele que está distante se torna próximo: pelo reconhecimento e aproximação de alguém, que se sente igualmente próximo do outro, numa reciprocidade de relação que Jesus Cristo chama de amor.