São Gregório nasceu por volta de 540 de importante família romana. Tornou-se prefeito de Roma muito jovem, em seguida, abandonando a carreira política fez-se monge e tornou-se abade do mosteiro de Santo André, no Monte Célio, em Roma. Foi eleito Papa aos 3 de setembro de 590. De saúde precária, não poupou esforços para atualizar a Igreja no campo da liturgia, da moral. Faleceu aos 12 de março de 604. Sua vida foi marcada pelo amor que é conhecimento, pois como se pode ler em suas obras sua sabedoria não se conquista meramente pelo saber, mas sobretudo pelo amor ao próximo. Escreveu obras definitivas, como seu famoso ‘Comentário Moral ao Livro de Jó’, seus ‘Diálogos’, a igualmente famosa ‘Regra Pastoral’, e muitas homilias. Dentre estas, destacamos hoje suas homilias sobre o Evangelho. Um conjunto de homilias sobre as mais importantes passagens dos quatro evangelhos. A homilia 13 é o objeto deste artigo, pois refere-se à passagem de Lc 12, 35-40, do 19º Domingo do Tempo Comum: a parábola do servo vigilante.
Gregório exorta-nos inicialmente à vigilância contra o mal. Mas logo acrescenta que evitar o mal não é suficiente para os vigilantes, pois importa, sobretudo, fazer o bem. Gregório quer mostrar que toda esforço contra o vício não deve ser buscado por si mesmo, mas em vista das boas ações e do amor de Deus: “Duas coisas são ordenadas aqui ao mesmo tempo: cingir os rins e segurar as lâmpadas; o que significa que a castidade deve tornar nossos corpos puros, e a verdade, nossas ações luminosas. Pois uma sem a outra não pode agradar ao nosso Redentor, quer façamos o bem sem renunciar às faltas da luxúria, quer sobressaiamos na castidade sem nos exercitarmos nas boas obras. Sem boas obras, portanto, a castidade é muito pouco, e, sem castidade, as boas obras não são nada” (Gregório Magno. ‘Homélies sur l’Évangile’. Paris: Du Cerf, 2005, p. 301, tradução do autor).
E mais: as boas obras devem ainda visar à morada celeste: “aquele que cumpre estes dois preceitos deve ainda, com esperança, aspirar à pátria celeste, e não se resguardar do vício com o único propósito de ganhar a estima deste mundo. Se alguém iniciar alguma boa ação para ganhar a estima dos outros, não deve alimentar tal intenção, nem buscar por suas boas obras a glória do mundo presente, mas deve pôr toda sua esperança no advento de seu Redentor. Por isso, o Evangelho acrescenta imediatamente: ‘Sede como homens que estão esperando seu senhor voltar de uma festa de casamento’. O Senhor partiu para as bodas, pois ressuscitou dos mortos e subiu ao céu, uniu-se à multidão dos anjos, como um novo homem. Sua volta se dá quando Ele se manifesta a nós pelo juízo” (p. 303).
É possível retomar a vigilância, mesmo depois de muito descuido. As idades da vida são recuperáveis até o fim de nossas existência, sempre há tempo para despertar: “É apropriado que o Evangelho acrescente algo sobre os servos que esperam: ‘quando ele vier e bater à porta, eles imediatamente lhe abrirão’. O Senhor vem quando se aproxima para julgar; Ele bate à porta quando nos adverte da proximidade da morte pelos ataques de uma doença. Nós lhe abrimos a porta imediatamente, Se O acolhemos com amor (…). ‘Felizes os empregados que o Senhor encontrar acordados quando chegar’. Quem vigia? Vigia aquele que mantém os olhos de sua alma abertos. Vigia aquele que se esforça para agir como acredita. Vigia aquele que repele a escuridão da dormência e da tibieza. É neste sentido que Paulo diz: ‘Vigiai, ó justos, e não pequeis’, 1Cor 15, 34. E também: ‘Chegou a hora de despertarmos do sono’, Rm 13, 11” (p. 303).
Eis o prêmio dos que vigiam: “Ouçamos agora como se comporta o Mestre para com os servos que encontra vigilantes em seu regresso: ‘Em verdade eu vos digo: Ele mesmo vai cingir-se, fazê-los sentar-se à mesa e, passando, os servirá’. Ele se cingirá, isto é, preparar-se-á para dar-lhes uma recompensa. Ele os fará sentar à mesa, isto é, eles restaurarão suas forças no descanso eterno, porque sentar à mesa é descansar no Reino. O Senhor declara em outro lugar: ‘Eles virão e se sentarão com Abraão, Isaque e Jacó’, Mt 8, 11” (p. 305). Passando, o Senhor nos serve, porque Ele nos satisfaz com o esplendor de sua luz. A expressão ‘Ele passa’ quer dizer que, após ter julgado, Ele volta em seu Reino. Ou ainda, que o Senhor, depois do juízo, passa por nós, porque Ele nos eleva da visão de sua natureza humana à contemplação de sua divindade. Passar, para Ele, é-nos conduzir à visão de sua glória…” (p. 305).
São Gregório é o modelo dos Papas e, por conseguinte, dos cristãos. Sua ‘Regra Pastoral’ inseriu na ética cristã a atenção aos diferentes temperamentos humanos, estilos de vida, profissões distintas, entre muitos outros elementos que definem a psicologia humana. Aqui, nesta passagem, um outro elemento de sua ‘psicologia’ aliado às exortações evangélicas, a saber, as várias idades da vida e sua relação com a paciência e a misericórdia de Deus: “Mas que devem os servos fazer se foram negligentes desde a primeira vigília? Esta primeira vigília diz respeito às renúncias da primeira fase da vida. Aqueles que foram descuidados não se devem desesperar, nem desistir de praticar boas obras. Pois o Senhor, declarando sua extrema paciência, acrescenta: ‘E caso ele chegue à meia-noite ou às três da madrugada, felizes serão, se assim os encontrar!’ A primeira vigília é a época dos primeiros anos, ou seja, da infância. A segunda é a adolescência ou a juventude, o que forma apenas uma idade, se confiarmos na autoridade das Sagradas Escrituras, pois Salomão diz: ‘Jovem, alegra-te na tua adolescência’, Ecl 11, 9. Quanto à terceira vigília, ela significa a velhice. Assim, aquele que não quis ficar acordado durante a primeira vigília, observe de algum modo a segunda: se durante sua infância negligenciou corrigir seus vícios, acorde pelo menos no tempo de sua juventude e embarque nos caminhos da vida. E aquele que não quis ficar acordado durante a segunda vigília, não deixe escaparem os remédios da terceira: se não teve o cuidado de embarcar nos caminhos da vida durante a juventude, pode recuperá-los pelo menos em sua velhice” (p. 305-307).
Um importante exortação contra a indiferença espiritual: “Que ninguém fique indiferente à longanimidade do Senhor, porque em nenhum dia de julgamento a sua justiça será exercida com severidade ainda mais severa porque antes Ele foi mais paciente. Este é o sentido das palavras de Paulo: ‘Não sabeis que a bondade de Deus vos impele à penitência?’, Rm 2, 4-5. O salmista diz: ‘Deus é justo juiz, forte e paciente’, Sl 7, 12” (p. 307).
Nova exortação sobre as preocupações humanas: é preciso autoconhecimento para que essas preocupações tomem a dimensão que merecem na vida cristã, sempre à luz de nossa ignorância sobre a nossa morte pessoal. Esta ignorância, no fundo, é uma exortação à vigilância: “Se Nosso Senhor quis que a nossa última hora nos fosse desconhecida, é para que a consideremos sempre iminente, e que, na impossibilidade de a prever, estejamos sempre preparados para ela. Portanto, meus irmãos, mantende os olhos da mente em vossa condição mortal; preparai-vos todos os dias para a vinda do Juiz com lágrimas e lamentações. E enquanto a morte nos espera com certeza, não vos preocupeis em prever o futuro incerto desta vida efêmera. Não vos incomodeis com as ocupações das coisas terrenas. Qualquer que seja a massa de ouro e prata que a envolve, quaisquer que sejam as vestes preciosas que estão em nossa carne, não é ela sempre carne? Portanto, não presteis atenção no que tendes, mas no que sois” (p. 309).
São Gregório Magno foi um desses inúmeros e grandes dons de Deus para a vida da Igreja que nós conhecemos pela história. Sua psicologia sobre cada pessoa humana abre a mensagem cristã a todos os homens em sua diversidade. Criança, adolescente, jovem, adulto, idoso… enfim, as idades da vida são também idades de vigilância. Não se trata, contudo, de simplesmente ‘cingir os rins’, e sim, de ter ‘lâmpadas acesas’. O Evangelho é luz.
Carlos Frederico Calvet da Silveira, professor da Universidade Católica de Petrópolis e do Seminário de São José, Rio