Peço perdão por este título sensacionalista, mas essa foi a única maneira de te convidar para ler este artigo. No ato penitencial da missa, dizemos que pecamos “por pensamentos e palavras, atos e omissões”. Temos uma luz razoavelmente clara sobre o que são os pecados por pensamento, por palavras e por atos. Em geral, sabemos que não podemos pensar mal das pessoas, temos ciência de que não é correto falar mentira ou difamar pessoas e temos claro que não podemos violar os 10 mandamentos da lei de Deus. Porém, restaria saber: que é um pecado de omissão?
A palavra omissão é a forma supina do verbo omitto, que significa entre outras coisas deixar de lado, abandonar e negligenciar. Os pecados realizados por omissão dizem respeito a todas aquelas ações que deixamos de lado ou que simplesmente negligenciamos o dever de agir. A Sagrada Escritura trata desses pecados nas passagens do servo que sabia a vontade do seu senhor e não fez o que lhe foi pedido (Mt 24, 45-51), das virgens imprudentes que não prepararam o óleo para a chegada do noivo (Mt 25, 1-13), daqueles que não deram de comer a Cristo quando ele teve fome nos pobres (Mt 25, 35-45), do levita e do sacerdote que não ajudaram o homem caído no caminho (Lc 10, 25-47) e da parábola do Rico e do pobre Lázaro (Lc 16, 19-31). Por fim, São Tiago resume os pecados de omissão com a seguinte expressão: “peca quem sabe que deve fazer o bem e não faz” (Tg 4, 17).
Na Patrística, também encontramos censuras sobre os pecados das coisas que deixamos de fazer. Por exemplo, São Gregório, na Regra Pastoral, ao falar sobre as qualidades que deveriam ter um pastor dizia: “que o pastor guarde silêncio discreto e tenha uma palavra útil: não revele o que deve calar e não cale o que deve revelar”. O silêncio inoportuno por razões meramente temporais era interpretado por São Gregório como um ato próprio do mercenário.
Na Idade Média, Santo Tomás dizia sobre o pecado de omissão: “deve-se dizer que uma coisa é voluntária (…) não somente porque cai sobre ela um ato da vontade, mas porque está em nosso poder que ela se faça ou não se faça” (S. Th. I-II q. 71, a.5 ad 2). Isso serve para mostrar que não é suficiente ficar parado para evitar o pecado, pois optar por nada fazer já é optar por algo.
Na Idade Moderna, Santo Afonso “para qualquer pecado de omissão, se requer um ato positivo da vontade, pois a vontade não se exerce e não peca, senão por um ato” (Theologia Moralis, t. 4, cap. 1, d. 1, n. 10). Essa citação serve para evitar que se considere qualquer coisa como pecado de omissão, por exemplo, há alguém sofrendo neste mesmo momento em que estamos lendo essa texto. Acaso estaríamos sendo omissos diante desse sofrimento? Baseados no conceito apresentado por Santo Afonso, podemos dizer que não; pois, não sabemos quem é a pessoa precisando de nós e, tampouco, temos poder para resolver seu problema.
Resumindo o ensinamento da Sagrada Escritura e dos doutores, poderíamos dizer que cometemos pecado de omissão quando sabemos o bem que deveríamos fazer e livremente escolhemos não fazê-lo. Por exemplo, se uma pessoa vê alguém passando mal na rua e vira as costas para evitar o trabalho, esse é um pecado de omissão. A questão que nos pesa é: deixar de votar seria um pecado de omissão?
A primeira coisa a perceber é o que o Concílio Vaticano II diz acerca do voto:
Todos os cidadãos se lembrem, portanto, do direito e simultaneamente do dever que têm de fazer uso do seu voto livre em vista da promoção do bem comum. A Igreja louva e aprecia o trabalho de quantos se dedicam ao bem da nação e tomam sobre si o peso de tal cargo, em serviço dos homens (Gaudium et Spes 75).
O voto não é apenas um direito para o católico, mas também um dever. Pois, nas sociedades democráticas, o voto é expressão da participação na vida política. Os candidatos são aqueles que participam assumindo sobre si os cargos eletivos para o bem da nação e os eleitores participam decidindo quem vai assumir o ofício de governar. A promoção do bem comum é um compromisso diretamente vinculado a uma dívida que todo cidadão tem com a nação que o gerou. Basta perceber que, individualmente, é impossível para um ser humano inventar um idioma, projetar toda tubulação de água, toda distribuição de energia elétrica ou construir rede de transporte ferroviário. Todas essas coisas devemos àqueles que nos precederam e ao trabalho conjunto de todas as pessoas da sociedade. A percepção de que nós somos devedores da vida social é apresentada no Concílio pela interdependência entre os homens e a sociedade (Cf. Gaudium et Spes, 25). São João Paulo II ensinava que a percepção dessa interdependência gera a virtude da solidariedade, que se define como uma “determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum” (Sollicitudo rei Socialis 38).
O bem comum foi definido pela Igreja como: “conjunto das condições da vida social que permitem, tanto aos grupos como a cada membro, alcançar mais plena e facilmente a própria perfeição” (Gaudium et Spes 26). O Concílio ainda apresentou uma lista de coisas que deveriam estar presentes nesse conjunto de condições de vida:
Alimento, vestuário, casa, direito de escolher livremente o estado de vida e de constituir família, direito à educação, ao trabalho, à boa fama, ao respeito, à conveniente informação, direito de agir segundo as normas da própria consciência, direito à proteção da sua vida e à justa liberdade mesmo em matéria religiosa (Gaudium et Spes 26).
A dúvida moral que paira na mente dos católicos é a seguinte: que fazer quando nenhum dos candidatos presentes no pleito estão verdadeiramente comprometidos com a concepção católica de bem comum? Mesmo nesses casos, votar deveria ser considerado um dever? Esse dilema moral gera aquilo que se chama tecnicamente de consciência perplexa. Dizia Santo Afonso: “consciência perplexa é aquela pela qual o sujeito, colocado entre dois preceitos, acredita que peca independentemente da parte que escolha” (Theologia Moralis t.1, cap. 1, n. 10). No nosso caso, seria da seguinte maneira: para contribuir com o bem comum e exercer a virtude da solidariedade o Concílio me diz que devo votar (preceito 1); porém, não posso contribuir com o mal e, entre os candidatos que tenho a disposição, acredito que fariam um grande mal a sociedade (preceito 2). Daí, a pergunta: que fazer?
Se pode suspender o ato, está forçado a adiá-lo até que possa aconselhar-se com homens sábios; mas se não puder suspendê-lo, está forçado a escolher o mal menor, evitando antes uma transgressão do direito natural ou positivo divino do que humano. Mas, se não pode discernir sobre o mal menor, qualquer que seja a parte que escolha, não peca, pois neste tipo de caso falta liberdade necessária para o pecado formal (Theologia Moralis t.1, cap. 1, n. 10).
O discernimento moral a ser feito é o seguinte: há um mal menor entre os candidatos? Se sim, o juízo mais adequado a fazer seria tolerar o mal menor. Se não, qualquer decisão tomada sobre o pleito é moralmente válida. Para Santo Afonso, há uma hierarquia a ser levada em consideração na hora de discernir o mal menor: em primeiro lugar, estão os males que violam o direito natural, em segundo lugar, os que violam a lei divina e eclesiástica e, em terceiro, aquilo que desobedece a lei dos homens. Contudo, resta ainda uma última questão: concretamente, quais critérios usaremos para medir qual é um mal maior ou menor?
Para essas eleições de 2022, o Regional Leste 1 da CNBB indicou os critérios de discernimento para os católicos, a saber, 1) os princípios do Bem Comum, 2) dignidade da pessoa humano, 3) defesa integral da vida – desde a concepção até a morte natural, 4) promoção da democracia, 5) defesa dos direitos humanos, 6) proteção do meio ambiente, 7) desenvolvimento integral e 8) combate à corrupção (Cf. Nota do Regional Leste 1 – CNBB sobre as eleições 2022).
Não é suficiente fazer uma conta simples para aplicar os critérios, isto é, não basta analisar as propostas dos candidatos e verificar 4 a 3 para um ou 5 a 2 para outro. Pois, existem valores mais fundamentais do que outros. A Nota doutrinal sobre algumas questões relativas à participação e comportamento dos católicos na vida política (2002) mencionava a existência de algumas exigências éticas fundamentais e irrenunciáveis, a saber, 1) condenação das leis civis quanto ao aborto e/ou eutanásia, 2) defesa dos direitos do embrião humano, 3) tutela da família, entendida como matrimônio monogâmico entre pessoas de sexo oposto, 4) defesa da liberdade de educação dos pais, 5) cuidado social com os menores, 6) libertação das vítimas das modernas formas de escravidão (por exemplo, droga, tráficos de pessoas, escravidão), 7) economia a serviço da pessoa e do bem comum, 8) liberdade religiosa e 9) recusa radical da violência e do terrorismo (Nota Doutrinal, n.4). No momento do discernimento moral, essas exigências fundamentais precisam ter mais peso do que outras.
Um fator não listado na Nota Doutrinal da Congregação para a Doutrina da Fé é sobre o caso em que antigas correntes ideológicas possam minar a estrutura política vigente no país. Embora a brevidade desse artigo não nos permita tratar da questão das ideologias, vale, contudo, deixar indicado os documentos da Igreja que radicalmente condenaram tais práticas: contra o nazismo (Mit Brennender Sorge), contra o Fascismo (em si, Non abbiamo bisogno) contra a educação fascista (Divini Illius Magistri), contra o comunismo (Divini Redemptoris). Há ainda declarações formais contra a economia política liberal que separa economia de vida moral (Quadragesimo anno, 36; Octagesima Adveniens, 35). A adesão formal a essas ideologias está em franca contradição com os princípios da Doutrina Social da Igreja. Contudo, a verificação da gravidade e da influência dessas ideologias em cada país é uma questão de discernimento que cabe a cada cristão e que ultrapassa os propósitos desse breve texto.
Resumindo: deixar de votar é errado? Depende. Se o fiel católico, a partir dos critérios apresentados acima, julga que ambos os candidatos são males de igual medida para a sociedade, então não há erro em votar neste, naquele ou em nenhum. Se, por outro lado, o fiel católico tem consciência do dever do voto e percebe que existe um mal maior a ser evitado, então pecaria por omissão aquele que deixasse de fazer o bem que sabe estar a sua disposição fazê-lo.
Wagner Augusto Moraes dos Santos
Doutor em teologia moral pela Universidade de Navarra e vigário paroquial na Paróquia Santos Anjos, no Leblon
Foto: Tânia Rego – Agência Brasil