Em 1215, durante o IV Concílio de Latrão, a Transubstanciação[1] era proclamada como dogma da fé. Quase cinquenta anos depois, em 1263, um sacerdote da Boêmia, que estava em peregrinação a Roma, celebrou a Santa Missa em Bolsena, cidade italiana próxima de Orvieto. No momento em que partia a hóstia, aflito pela dúvida sobre a presença real de Cristo naquele pequeno pedacinho de pão sem fermento, surpreende-se ao perceber que da hóstia saíram algumas gotas de sangue que mancharam o corporal de linho e algumas pedras do altar. Após o milagre do corporal, o Papa Urbano IV decide ampliar para toda a Igreja a Solenidade de Corpus Christi com a bula Transiturus, de 1264, colocando a festa na quinta-feira após o primeiro domingo depois de Pentecostes.
O Corpus Christi, a verdadeira presença do corpo de Cristo na hóstia consagrada, sobre a qual giravam as dúvidas do sacerdote da Boêmia, testemunha do milagre de Bolsena, é a confirmação da vitalidade do amor cristão, das obras de caridade inspiradas na Eucaristia. Nesse sentido, as palavras de Papa Pio XII na sua mensagem radiofônica, por ocasião do XXXVI Congresso Eucarístico Internacional no Rio de Janeiro, em 24 de julho de 1955[2], no início da segunda metade do século passado, alguns anos após o fim da Segunda Grande Guerra, tinha a força de exaltar pela fé no dom inestimável da Eucaristia”: “O si scires donum Dei! Oh! se verdadeiramente se conhecesse e reconhecesse o dom de Deus! Não haveria fiel que nos dias do Senhor faltasse em tomar parte ativa no divino Sacrifício.
A Eucaristia-comunhão: o Rei divino que se nos dá a nós. Oh! se bem se conhecesse e apreciasse devidamente este dom infinito do infinito Amor! Mistério inefável de união, depois da União Hipostática e da divina Maternidade, a mais assombrosa e divinizante, que tende a revestir-nos, não da púrpura real, mas de Pessoa mesma do Rei divino; a fazer-nos cristóferos, concorpóreos e consanguíneos seus; a transformar-nos e converter-nos n’Ele, até podermos dizer que, mais que nós mesmos, é Cristo que vive em nós. Por conseguinte, o mistério de unidade, que incorporando e quase identificando os fiéis com Cristo, tende a uni-los numa só família, num corpo único, em que palpite um só coração e uma só alma e cada membro zele solícito o bem dos outros, tanto ou mais que o próprio.”
- João XXIII na proximidade do Concílio Vaticano II, na Solenidade de Corpus Christi em 21 de junho de 1962[3]: “Ó Jesus, alimento suprassubstancial das almas, a ti vem este imenso povo. Eles se voltam a penetrar a sua humana e cristã vocação de novo ímpeto, de virtude interior, com disponibilidade ao sacrifício, do qual Tu deste inimitável sabedoria, verbo e exemplo, com a palavra e com o exemplo. Nosso irmão primogênito, Tu precedeu Jesus Cristo, os passos de cada homem, Tu perdoou as faltas de cada um; todos e cada um Tu elevas ao mais nobre, ao mais convencido, ao mais atuante testemunho de vida… Ó Jesus, panis vere, único alimento substancial das almas, reúne todos os povos em torno à tua mesa: essa é a realidade divida sobre a terra, é o penhor de favores celestes, é segurança das justas compreensões entre os povos, e de competições pacíficas para o verdadeiro progresso da civilização… Nutridos por Ti e de Ti, ó Jesus, os homens serão fortes na fé, alegres na esperança, operosos nas aplicações múltiplas da caridade.”
Na Solenidade Corpus Christi, em 5 de junho de 1969[4], numa década por tantas mudanças e avanços científicos, como foi a viagem do primeiro homem à Lua, parece particularmente receptivo ao ideal da paz e do amor universais, sobretudo entre as jovens gerações, S. Paulo VI convoca a Humanidade à comunhão universal: “Comunhão com Cristo, então, a Eucaristia, como sacramento e como sacrifício: mas também comunhão entre nós, irmãos, com a comunidade, com a Igreja: e é ainda a Revelação da nos dizer, com as palavras de Paulo: ‘pois nós, embora muitos, somos um só pão, um só corpo; porque todos participamos de um mesmo pão’ (1Cor. 10, m). O Concílio Ecumênico Vaticano II colocou profundamente à luz dessa realidade, quando chamou a Eucaristia ‘convento de comunhão fraterna’ (Gaudium et Spes, 38).”
- João Paulo II na Solenidade de Corpus Christi, em 11 de junho de 1998[5], já aproximando-se o grande jubileu do ano 2000, fala de globalização e da Eucaristia, o dom por excelência, já prometida desde o início da história humana e inclui todos os povos, todas as pessoas, todos os tempos: “A hodierna solenidade de Corpus Christi convida a meditar sobre o singular caminho que é o itinerarium salvificumde Cristo através da história, uma história escrita desde as origens, de modo contextual, por Deus e pelo homem. Mediante as vicissitudes humanas, a mão divina traça a história da salvação. É um caminho que inicia no Éden quando, após o pecado do primeiro homem, Adão, Deus intervém para orientar a história rumo à vinda do segundo Adão. No Livro do Gênesis está presente o primitivo anúncio do Messias, e a partir de então, ao longo do suceder-se das gerações, como é narrado nas páginas do Antigo Testamento, desenrola-se o caminho dos homens rumo a Cristo. Depois, quando na plenitude dos tempos o Filho de Deus encarnado derrama na cruz o sangue para a nossa salvação e ressuscita dos mortos, a história entra, por assim dizer, numa dimensão nova e definitiva: realiza-se então a nova e eterna aliança, da qual Cristo crucificado e ressuscitado é princípio e cumprimento. No Calvário o caminho da Humanidade, segundo os desígnios divinos, conhece a sua viragem decisiva: Cristo põe-se à frente do novo Povo para o guiar rumo à meta definitiva. A Eucaristia, sacramento da morte e ressurreição do Senhor, constitui o centro deste itinerarium espiritual escatológico.”
No ano seguinte, em 1999[6], assim se expressou S. João Paulo II: “a Solenidade de Corpus Domini (Corpo do Senhor) é uma festa de louvor e ação de graças. Nela, o povo cristão reúne-se à volta do altar para contemplar e adorar o Mistério eucarístico, memorial do sacrifício de Cristo, que deu a salvação e a paz para todos os homens. De fato, não basta falarmos de paz, se não nos empenharmos em cultivar no coração sentimentos de paz, e em manifestá-los nas relações diárias para com quem vive ao nosso lado.”
Em unidade, diante de Cristo, o Pão vivo que desceu dos céus, demonstramos que é o mesmo Espírito que nos une. Em unidade, demonstramos que é o sacramento da Eucaristia que nos santifica. Em Corpus Christi, extravasamos nossa fé, pois “diante deste mistério de amor, a razão humana experimenta toda a sua limitação.” (São João Paulo II, Ecclesia de Eucharistia[7], 15).
De modo especialíssimo, a Solenidade de Corpus Christi deve ser para todos nós “uma preciosa ocasião para uma renovada consciência do tesouro incomparável que Cristo entregou à sua Igreja. Seja um estímulo para a sua celebração mais viva e sentida, da qual brote uma existência cristã transformada pelo amor.” (São João Paulo II, Mane Nobiscum Domine[8], 29).
Solenemente, em Corpus Christi, celebramos, adoramos e contemplamos o Corpo, o Sangue, a Alma e a Divindade de nosso Senhor Jesus Cristo, que se faz presente na Eucaristia com zelo, piedade, respeito, amor e fé, professando cada vez mais que, por meio de uma profunda adoração, de joelhos no chão, anunciamos “uma consciência viva da presença real de Cristo, tendo o cuidado de testemunhá-la com o tom da voz, os gestos, os movimentos, o comportamento no seu todo.” (São João Paulo II, Mane Nobiscum Domine, 18)
O Papa Bento XVI, na Solenidade de Corpus Christi de 23 de junho de 2011[9], afirma que a presença real do corpo e do sangue se torna na confirmação paradoxal de um amor mais forte que a morte, de um amor que vence o pecado: “Tudo parte do coração de Cristo, que na Última Ceia, na vigília da sua paixão, agradeceu e louvou a Deus e, deste modo, com o poder do seu amor, transformou o sentido da morte que se estava a aproximar. O fato que o Sacramento do altar tenha assumido o nome Eucaristia — ação de graças — expressa precisamente isto: que a transformação da substância do pão e do vinho no Corpo e Sangue de Cristo é fruto do dom que Cristo fez de si mesmo, dom de um amor mais forte do que a morte, Amor divino que o fez ressuscitar dos mortos. Eis porque a Eucaristia é alimento de vida eterna, Pão da vida.”
A Solenidade de Corpus Christi é uma oportunidade singular de ouvirmos a voz de Jesus Eucarístico nos dizendo: “Fazei isto em memória de Mim!”. (Lc 22, 19). Se pararmos para pensar no alcance do pedido de Cristo, nós perceberemos que Ele nos pede que participemos, em estado de graça, da Eucaristia. Ele nos pede também que professemos com nossas vidas, ações, gestos e palavras que a Sagrada Comunhão é o centro da nossa religião, o alicerce da nossa fé, a Eterna beleza que conquista os nossos corações. Quando somos cativados por esta beleza, aprendemos a bradar: A Eucaristia “é uma teofonia. O Senhor se faz presente no Altar para ser oferecido ao Pai para a salvação do mundo”. (Papa Francisco, Audiência em 8 de junho de 2017).
Em 2020, em plena primeira onda de contágio na pandemia da Covid-19, durante a Solenidade de Corpus Christi, o Santo Padre, o Papa Francisco[10], fez uma ligação entre esse momento histórico e o mistério da Eucaristia que celebramos: “A Eucaristia não é simples lembrança; é um fato: é a Páscoa do Senhor, que ressuscita para nós. Na missa, temos diante de nós a morte e a ressurreição de Jesus. Fazei isto em memória de Mim: reuni-vos e, como comunidade, como povo, como família, celebrai a Eucaristia para vos lembrardes de Mim. Não podemos passar sem ela, é o memorial de Deus. E cura a nossa memória ferida.”
Relembra que o Santíssimo Corpo e sangue de nosso Senhor é Sacramento de Cura: “Cura, antes de mais nada, a nossa memória órfã… Deus, porém, pode curar estas feridas, introduzindo na nossa memória um amor maior: o d’Ele. A Eucaristia traz-nos o amor fiel do Pai, que cura a nossa orfandade. Dá-nos o amor de Jesus, que transformou um sepulcro, de ponto de chegada, em ponto de partida e da mesma maneira pode inverter as nossas vidas. Infunde-nos o amor do Espírito Santo, que consola, porque nunca nos deixa sozinhos e cura as feridas.”
Quando toda a Humanidade estava preocupada, na busca de uma imunização eficaz contra o novo coronavírus, o Papa Francisco fala de uma imunização mais ampla: “Com Jesus, podemos imunizar-nos contra a tristeza. Continuaremos a ter diante dos olhos as nossas quedas, as canseiras, os problemas de casa e do trabalho, os sonhos não realizados; mas o seu peso deixará de nos esmagar, porque, na profundidade de nós mesmos, temos Jesus que nos encoraja com o seu amor. Aqui está a força da Eucaristia, que nos transforma em portadores de Deus: portadores de alegria, não de negativismo. Nós, que vamos à missa, podemos perguntar-nos o que levamos ao mundo: as nossas tristezas, as nossas amarguras ou a alegria do Senhor? Fazemos a Comunhão e, depois, continuamos a reclamar, a criticar e a lamentar-nos? Mas isto não melhora coisa alguma, ao passo que a alegria do Senhor muda a vida.”
O Papa Francisco convida a permitir-nos alcançar pela eficácia do mistério que temos diante de nossos olhos: “O Senhor, oferecendo-Se a nós tão simples como o pão, convida-nos também a não desperdiçar a vida, correndo atrás de mil coisas inúteis que criam dependências e deixam o vazio dentro. A Eucaristia apaga em nós a fome de coisas e acende o desejo de servir. Levanta-nos do nosso estilo cômodo e sedentário de vida, lembra-nos que não somos apenas boca a saciar, mas também as mãos d’Ele para saciar o próximo… continuemos a celebrar o Memorial que cura a nossa memória, este memorial é a missa. É o tesouro que deve ocupar o primeiro lugar na Igreja e na vida. E, ao mesmo tempo, redescubramos a adoração, que continua em nós a ação da missa. Faz-nos bem, cura-nos por dentro. Sobretudo agora, temos verdadeiramente necessidade dela.”
Padre Carlos Augusto Azevedo da Silva – Mestre em Direito Canônico
Foto: Vatican Media