Os sinais de Deus passeiam por toda parte

Sete anos, sete meses e sete dias. Esse foi o tempo contado dia a dia que durou o governo diocesano de São José do Rio Preto (SP), administrado pelo bispo Orani João Tempesta, monge cisterciense que até então dirigia o Mosteiro Nossa Senhora de São Bernardo, em São José do Rio Pardo (SP). No dia 26 de fevereiro de 1997, ele foi convocado para seu primeiro cargo de bispo em São José do Rio Preto, estreando numa dimensão mais difícil da já difícil jornada de um religioso. Tinha jovens 42 anos de vida.

Ele veio sorridente, parecendo não se incomodar com o peso da missão. O rosto risonho, aliás, é sua marca pessoal. Quando se tem Cristo no peito, leva-se o riso no rosto, isso é matemático. Outra coisa logo notada foi o gesto recorrente de inclinar a cabeça para ouvir o interlocutor. Perguntamos a uma psicóloga e terapeuta holística. Ela disse: “É um sinal avançado de comunicação, de querer ouvir o outro, dar-lhe importância, uma deferência e poder atendê-lo.” E este gestual é visto até hoje… que bom.

Ordenado sacerdote em 1974, ele passou a fazer o caminho da roça de um recém-padre (foi vigário cooperador da Paróquia São Roque, substituto de capelas e comunidades rurais e outros serviços) enquanto estudava muito, alcançando formação superior em comunicação, filosofia, parapsicologia etc. Em 1984, foi eleito vice-prior do mosteiro e, em 1990, promovido a prior; foi reeleito; ampliou os espaços físicos do mosteiro; tornou-o abadia; converteu-se no primeiro abade cisterciense nascido no Brasil. Em 1997, nomeado bispo de Rio Preto, outra boa surpresa.

Foi nessa parte da avalanche que eu entrei em contato com ele por telefone e não o abandonei mais, nas entrevistas boas e nas ruins, nos momentos solenes e nos momentos triviais da Igreja de Deus. Como repórter e depois editora do jornal “Diário da Região” (fundado em 1950), tive a sorte de ser escalada para seguir este homem de tantos exemplos,  atitudes e impressões.

Orani Tempesta já chegou na diocese com seu lema unificador para o seu primeiro cargo episcopal: “Venho para ser o sinal da unidade visível entre vocês, para que todos sejam um, a fim de que o mundo creia em Jesus Cristo”.

Aqui em Rio Preto, sua escolaridade de bispo. Até então, não existia uma aproximação muito unânime entre os fiéis e seu pastor, no caso o bispo emérito Dom José de Aquino Pereira, português de Trás-os-Montes.

Era relação de muito respeito, mas pouca proximidade. Empreendedor nato e verdadeiro motor no crescimento da diocese (foi o segundo bispo), Dom Aquino cometeu o grande ‘pecado’ de demolir a Catedral no centro da cidade, sede física do episcopado nas celebrações, enfrentando o protesto da cidade e da mídia. A população não o ‘perdoou’, mas o estrago estava feito, tendo-se de conviver para sempre com uma catedral sem ligação com a história rio-pretense e sem identidade de templo cristão, totalmente contrária aos traços arquitetônicos dos anos 1970, ano da reconstrução.

Desde o dia 1º de maio de 1997, Orani João Tempesta se tornou o segundo bispo de São José do Rio Preto, cidade bonita e forte, que gosta de padres, se tornam amigos logo e assim aconteceu então com aquele religioso chegado sozinho e simples de São José do Rio Pardo.

Lembro-me do seu passeio inaugural pela cidade, triunfalmente em cima de um caminhão do Corpo de Bombeiros, pronto para ‘incendiar’ a diocese com o seu grande, enorme coração.

Certo dia de 1997, fui convidada pelo bispo Dom Aquino para anunciar na imprensa escrita o novo bispo; terminada a entrevista, Dom Aquino me deu uma foto de corpo inteiro de Dom Orani e um número de telefone do mosteiro cisterciense de São Bernardo anotado na foto. Perguntei-lhe: mas ele atende? (não é muito fácil entrevistar por telefone um clérigo nomeado, às vezes é impossível). Mas animei-me com a foto: era um homem jovem e muito sorridente, vestido com o hábito cisterciense, os braços abertos, pronto para abraçar alguém. Do outro lado da linha, a 319 quilômetros de distância, ele atendeu o telefone, amistoso na voz, animado no tom.

Daí em diante, persegui-o por sete anos, sete meses e sete dias com uma convivência quase diária, uma amizade que é rara e preciosa entre jornalista e fonte. Além de rara, de uma sinceridade valiosa. Principalmente quando a pauta se tratava de momentos embaraçosos da vida rio-pretense, com episódios diocesanos. Ele compreendia o papel da imprensa, nós compreendíamos o seu zelo com as coisas da Igreja.

De imediato, a cidade se apaixonou por ele: logo recebeu o título de Cidadão Honorário da Câmara Municipal e foi se tornando indispensável na vida da comunidade. Simplicidade na autoridade é uma característica de poucos. Também tem este atributo.

Entre outras inúmeras iniciativas em Rio Preto, o bispo Orani iniciou o projeto “Construindo Comunidades” com a instalação da Rede de Comunidades, projeto esse querido pelos padres para disseminar o Evangelho. Iniciou o mutirão de evangelização de casa em casa; promoveu cursos, retiros, congressos e reciclagem para leigos e padres; formou a Pastoral da Comunicação (à qual deu apoio irrestrito); da Educação; dos Políticos; dos Empresários; lançou o Censo Diocesano (inédito) e comemorou com grandiosidade os 70 anos de criação da Diocese de Rio Preto. Foi ao Vaticano pedir a criação da Diocese de Catanduva, cidade vizinha, católica e populosa. E instalou-a com todas as formalidades. Eu estava lá.

São infindáveis suas obras e criações, um apostolado verdadeiro, uma história de conexões felizes com o povo de Deus, um mundo também de construções políticas, sempre priorizando a Igreja de Deus. E nesse meio tempo, ainda assumiu responsabilidade pelo Mosteiro Cisterciense de Claraval (MG).

Segue a vida, e então ele sobe o território brasileiro e vai ser arcebispo lá em Belém do Pará. Uma semana depois, já saudosa, entrevistei-o por telefone sobre um assunto pendente na diocese rio-pretense. Ele me atendeu calmamente, mas avisou que estava conhecendo um conjunto de palafitas para saber como vivia o povo pobre e sem esperança. Segundo telefonema tempos depois: “Estou no meio de invasão de uma igreja pela população devido aos estragos da chuva. Vamos lá!”. Forneceu a entrevista assim mesmo.

Para o cargo de arcebispo metropolitano, recebeu o pálio simbólico das mãos do então Papa Bento XVI, em 2005, (pálio é uma espécie de gola de lã, com seis cruzes bordadas, representando a união com o sucessor do Apóstolo Pedro).

Lá no Pará derreteu-se de amores pela devoção do Círio de Nazaré, a maior procissão católica brasileira (em outubro) com duração de 15 dias em Belém e público de 2 milhões de fiéis.

A vida continua e eis que Dom Orani é transferido para a Arquidiocese do Rio de Janeiro, onde está até hoje. Na programação, desde visitas às favelas e hospitais do Rio até a acolhida do Papa Francisco na 28ª Jornada Mundial da Juventude, em 2013. Eu estava lá também, e fiquei honrada quando ele saiu de um cortejo com o Papa Francisco no corredor central de hospital para doentes de Aids e outras doenças severas, apenas para me abraçar e se colocar à disposição para informações.

Na minha penúltima viagem ao exterior em 2014, a principal pauta era cobrir a cerimônia de cardinalato de Dom Orani, tornando-o um dos sete cardeais do mundo que compõem o Conselho Cardinalício, que toma decisões importantes da Igreja do mundo inteiro junto com o Papa. Novamente, ele me viu no meio da multidão (na Basílica de São Pedro, em Roma, cabem mais de 60 mil pessoas, sentadas) e atravessou o corredor central para um abraço, agora de cardeal…

Vi-o por último no Dia de São José deste ano de 2022, missa do padroeiro na Catedral e posse do sexto bispo de Rio Preto, Dom Villar. A missa não tinha começado, e ele estava lá fora, de pé, esperando o povo chegar, tirando foto com quem conhecia e não conhecia, abraçando a todos, ele é assim democrático.

No dia do cardinalato em fevereiro de 2014, o Papa Francisco leu uma carta aos cardeais: “Cardinalato não é promoção, não é honra ou decoração. É um serviço e exige que se alargue o olhar e se amplie o coração.”

Os sinais de Deus passeiam por toda parte.

 

Cecilia Demian

Jornalista, advogada, escritora, católica, coautora do livro “Orani, Pastor da Unidade”

 

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