Solidão e escuta

Para o crítico inglês Peter Hunt “Fique longe da água, Shirley!” (2011) é “um livro revolucionário, que faz com que crianças e adultos olhem uns para os outros com mais compreensão.” Não há como não sair “bagunçado” após a leitura deste livro escrito e ilustrado pelo genial John Burningham, falecido no dia 4 de janeiro de 2019. 

O livro conta a história de Shirley, uma menina criativa e de imaginação fértil, que vai à praia com sua família. Enquanto o pai e a mãe ficam sentados, lendo jornal e fazendo tricô, respectivamente, a menina pega um barco a remo e adentra o mar em busca de aventura. 

Ao mesmo tempo em que Shirley mergulha em sua imaginação, escuta a voz de sua mãe ao fundo, alertando-a dos “perigos”, mas nada atrapalha a menina, que continua brincando muito até que o sol se ponha. 

Uma das grandes características de Burningham é contar histórias a partir do olhar da criança. Nessa história especificamente a narrativa é apresentada de forma simultânea e oposta. Há uma dualidade interessantíssima entre Shirley e sua família, muito bem explorada pelas ilustrações. 

Do lado esquerdo da página, na qual o fundo é sem graça, todo branco, estão os pais da menina em suas cadeiras de praia, presentes fisicamente, porém ausentes da ludicidade experienciada pela menina, encouraçados em suas vidas adultas sem espaço para o diálogo, porém repletos de palavras de medo e ordem. 

Do lado direito, onde Shirley está, tudo é cor, há um mundo de ação, entramos no universo criado pela menina, de sonho e fantasia, e somos convidados a participar com ela de todas as suas aventuras.  

Convido a vocês a pensarem junto comigo. Como cresce uma criança, como essa da história, que não é vista e nem ouvida pelas pessoas mais importantes da sua infância?

Como pode crescer de forma ordenada, saudável, respeitando e sendo respeitada, ancorando-se na realidade da vida quando esta solicitar, se os pais não conseguem equilibrar em suas vidas o uso das redes sociais atualmente, por exemplo, dando mais atenção ao que acontece nos aplicativos do que na vida dos filhos? 

Embora os pais chamem a atenção de Shirley o tempo todo na história, a ilustração mostra duas pessoas autocentradas, preocupadas com elas mesmas. Pedem para a menina ficar longe da água, mas a ilustração mostra que isso não é feito com cuidado, com entrega, com genuína presença e preocupação. 

Como uma criança que cresce neste ambiente pode aprender a escutar a se priorizar!? A personagem carece de uma escuta, um olhar, uma educação integral e fundamental, que perpassa todos os sentidos. 

A atitude desses pais não está educando a menina para o valor da escuta, que é de fato uma condição para as nossas relações, escutar é fundamental, é mais do que só ouvir, “Escutar supõe proximidade sem a qual não é possível um verdadeiro encontro” (CF 2022, nº 26).

Jesus ao escutar aqueles que surgem em seu caminho nos ensina isso na prática. “Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça. E Jesus dizia ainda: Prestem atenção no que vocês ouvem: com a mesma medida com que vocês medirem, também vocês serão medidos; e será dado ainda mais para vocês” (Marcos 4, 23-24). 

Com efeito, acolher a pedagogia de Jesus é compreender que escutar é “o ponto de partida para acolher, compreender, problematizar e transformar a realidade” (CF 2022, nº 27). E em nossas famílias esse acolhimento nos tempos de hoje precisa ser urgente! Pais e mães são essencialmente educadores, que devem encarar a vida em família de forma madura, como um processo educativo. 

A família é o lugar inicial em que todos interagem e interdependem do outro, onde aprendemos a viver e conviver, onde tudo começa e termina. “A família é, portanto, o lugar privilegiado para crescer em sabedoria, idade e graça. Por isso, se diz que família é escola de virtudes” (CF 2022, nº 179). Um espaço ideal para aprender desde cedo a falar com sabedoria e ensinar com amor, mais do que com palavras, com ações, com exemplos. 

Neste sentido, a palavra que sintetiza esse livro do Burningham é a solidão. É possível uma criança crescer rodeada por pessoas e, ainda assim, continuar sozinha, não sendo ouvida por pais surdos e engessados em suas cadeiras, incapazes de perceber a importância que é participar efetivamente da infância prazenteira de um filho. 

No entanto, também é possível com o tempo aprender a estar sozinho e não estar só, gostando da pessoa com quem fica quando se está sozinho; você mesmo e Deus, que não apenas te escuta, mais te chama. E para ouvir o chamado de Deus nós devemos querer ouvi-Lo. No livro, Shirley ainda é uma criança e está de fato com os pais e sozinha, é verdade, mas cresce ao aprender a se divertir e dialogar com ela mesma…

A solidão nos permite algo importante: o diálogo interno, para sabermos como e onde nos encontramos e, consequentemente, O encontramos. Só a maturidade é capaz de nos ensinar a ouvir, a cantar e a educar: “Deus quer falar comigo, em coisas tão pequenas, nas coisas simples (…) Fala Senhor, preciso ouvir Tua voz, eis aqui o tua serva. Fala no irmão, na Palavra, Senhor, e no meu coração.” Uma boa opção para o Canto de Aclamação neste Tempo da Quaresma.

Assim, a solidão é uma boa facilitadora à nossa primeira tarefa no ouvir Deus: desenvolver uma postura de paciência e escuta, como Moisés na tenda (Ex 33:7-9), Elias na montanha (1Rs 19:11-12), Maria aos pés de Jesus (Lc 10:38-42) e Samuel no tabernáculo (1Sm 3:10). É, sem dúvida, uma grande oportunidade para nos reencontrarmos com nós mesmos, nos conhecermos melhor e saber o que queremos de melhor para nós e para quem amamos. 

Paz e bem!

 

Dinair Fonte

Foto: Simon Demey 

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