‘Todos têm o direito de uma segunda chance’

Durante o mês de dezembro, houve celebrações eucarísticas por ocasião do Natal em várias unidades do Departamento Geral de Ações Socioducativas (Degase), que é um órgão do Governo do Estado do Rio de Janeiro, que executa as medidas judiciais aplicadas aos adolescentes em conflito com a lei.

O arcebispo metropolitano, Cardeal Orani João Tempesta, presidiu a Missa de Natal no Centro de Socioeducação Maria Luiza, situado na Ilha do Governador, com a presença do assistente eclesiástico adjunto da Pastoral do Menor, padre Charles Fernandes Gomes, que também é administrador paroquial da Paróquia São Miguel Arcanjo, em Benfica.

Em entrevista para o TF, padre Charles Fernandes partilhou o trabalho que realiza há dois anos com adolescentes que cumprem medidas socioeducativas de internação provisória nas unidades do Degase do Rio de Janeiro.

 

TF – Qual é a diferença do Degase com relação ao sistema prisional?

Padre Charles Fernandes Gomes – O Degase é regido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que trata sobre a natureza pedagógica das medidas socioeducativas e a política de socioeducação. Quando um adolescente até 18 anos é apreendido em algum flagrante ou delito, como homicídio, uso de drogas ilícitas, agressão, ato de violência, pequeno furto, assalto e sequestro, ele é levado para uma das unidades do Degase. Não é uma prisão, apenas está privado de liberdade. A ótica do Degase é ressocializar. O jovem precisa ter a compreensão que ele não está preso, e sim passando por um processo socioeducativo para que seja inserido novamente à sociedade.

 

TF – O que leva um adolescente ao delito?

Padre Charles – Há muitas respostas, porém, em geral está ligado à desestruturação da família ou por motivos sociais, como o desemprego, a falta de estudos e de possibilidades na vida. São fatores que contribuem para que eles acabem entrando para o mundo do crime. A criminalidade é um caminho que o adolescente encontra quando ele se desespera diante da realidade que se encontra, e começa a sair do caminho. Como sabemos, o mundo o engole e aí vêm as consequências. Não estou justificando, mas muitos são vítimas da sociedade, marcada pela desigualdade e por políticas públicas que não contemplam oportunidades para os adolescentes e jovens.

 

TF – O que o Degase oferece para ressocializar os adolescentes infratores?

Padre Charles – A função do Degase é ressocializar o adolescente infrator por meio da educação e da profissionalização, capacitando-o para que volte à sociedade com uma vida renovada, transformada. Junto com uma educação que prioriza os valores humanos, ética e moral, os socioeducandos aprendem uma profissão, como por exemplo, cortar cabelo ou fazer pizza. Quando ele sair da instituição e tiver interesse, há projetos de créditos para que ele possa se tornar empreendedor, desenvolver a autoconfiança, colocando em prática o que aprendeu no período de ressocialização.

 

TF – Qual é a função da assistência religiosa?

Padre Charles – A assistência religiosa está prevista no artigo 24 do ECA, que pode ser realizada pela Igreja Católica, como de outras denominações religiosas.

A Igreja, por sua vez, com a presença amiga e confiável dos assistentes religiosos, isto é, dos padres, diáconos, consagrados ou catequistas, tem a missão de fazer com que o adolescente possa superar suas limitações e seja inserido novamente na sociedade. Nosso desejo e empenho é que ele, ao sair da unidade, encontre um trabalho, possa ter boas amizades, constituir uma família, enfim, possa viver com dignidade.

Os assistentes religiosos também procuram ser uma presença da família junto com os adolescentes. Cerca de 60% dos jovens internados no Degase não recebem visita das famílias. Uma presença que recorda os aniversários, leva um abraço, escuta, orienta na fé e na vida.

 

TF – Como ser um assistente religioso?

Padre Charles – A primeira condição é ter vocação. Quando alguém manifesta o desejo de ser um assistente religioso, logo convidamos para acompanhar nossas visitas. O candidato precisa conhecer e sentir a realidade do trabalho e verificar se tem sensibilidade e espiritualidade para desempenhar a missão. Junto com o estágio, aos poucos, o candidato recebe formação adequada, inclusive o que determina o ECA sobre o assunto.

 

TF – Qual seria o perfil de um assistente religioso?

Padre Charles – O candidato não deve ver o socioeducando como um criminoso, como alguém que fez algo ruim e tem que pagar. Devemos ter a mesma atitude do que disse o Papa Francisco quando presidiu missa e o rito do lava-pés em uma penitenciária. Ele partilhou que quando entra numa prisão agradece pela oportunidade de encontrar-se com Jesus e de ter sido livrado de algo errado, e poderia ser um daqueles que está visitando. Nosso trabalho deve ser realizado sem julgamentos, mas pautado na amortização, caridade e misericórdia.

 

TF – Para viver essa vocação precisa ter o mesmo olhar de Cristo?

Padre Charles – Não conseguimos fazer nada sem amor. Quando falo de amor não é o amor paixão que cega, mas o amor que me possibilita a compaixão. A capacidade de olhar para o outro e ter a certeza que ele tem chance, mesmo quando ele próprio não acredita em si mesmo. Quem somos nós para julgar alguém? Independente do que levou o adolescente a ficar privado de liberdade, devemos acreditar que ele tem uma segunda chance.

 

TF – É um trabalho, uma vocação que vale a pena?

Padre Charles – A pandemia nos ensinou muito. A depressão, angústia, pânico, pensamentos suicidas, doenças psíquicas, por exemplo, também são cárceres. Muitas pessoas estão presas sem permanecer numa unidade prisional ou socioeducativa.

Nossa missão como Igreja que somos é evangelizar, transformar a vida dos adolescentes mesmo cumprindo uma pena socioeducativa, privado da liberdade do ir e vir na sociedade. Mas, ele não está privado da liberdade de pensar, sonhar e planejar a sua vida.

A assistência religiosa é uma forma lúdica do socioeducando ter a possibilidade de acreditar em seus sonhos e que Deus sonha junto, ao seu lado. Devemos contagiar com a esperança para quem já a perdeu, a amorização para quem está desacreditado do amor e a luz para quem está tão acostumado com as trevas. Os que aproveitam a oportunidade, de corações abertos, conseguem retornar à sociedade e somar.

 

TF – Como tem sido a experiência de trabalhar com adolescentes privados de liberdade?

Padre Charles – Muitos dizem que estou enxugando gelo, que o sistema é falido. Sou teimoso. Tenho um olhar de fé para essa realidade. Afinal, vivo da fé como sacerdote, é a minha pregação. Não trabalhamos com coisas, mas com pessoas. O Degase não é um depósito de pessoas, mas são corações, seres humanos, que numa determinada fase da vida tiveram uma fraqueza, cometeram um delito, todos têm o direito de uma segunda chance.

 

Carlos Moioli

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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