Tomás de Aquino: Esta palavra é dura!

Jesus é Palavra e Vida. Estas duas propriedades divinas do Salvador causaram espanto e escândalo a alguns discípulos porque foram associadas pelo Mestre aos mistérios de sua vida que eles ainda haveriam de conhecer: a morte e a ressurreição de Jesus e a participação de todo cristão nestes mistérios. Participação pela comunhão com sua carne e vida pela Eucaristia para todos e, para alguns, também pelo martírio. Santo Tomás de Aquino (1225-1274) ajuda-nos a compreender a passagem narrada por João no final do Capítulo 6 de seu evangelho: ‘Esta palavra é dura’, Jo 6, 60”.

Então, Tomás explica: “Chamamos de duro aquilo que não se divide facilmente e que oferece resistência. Uma palavra é, portanto, dura porque resiste à inteligência ou à vontade, quando não podemos apreendê-la pela inteligência ou quando não agrada à vontade. E nesses dois sentidos, essa palavra era dura para eles, por um lado, pela inteligência, porque superava em muito a fraqueza da sua inteligência. Como estavam sujeitos à carne, não conseguiam compreender o que Cristo havia afirmado: que lhes daria a sua carne para comer. Por outro lado, é dura para a vontade, porque ele falou muito sobre o poder de sua divindade. E mesmo que na sua fé o considerassem um profeta, não acreditavam que ele fosse Deus. E por isso lhes pareceu que falava de si mesmo com exagero: as cartas de Paulo são severas e fortes, diziam, 2Cor 10, 10; e a sabedoria é extremamente amarga para os homens ignorantes, Sir 6, 21. Daí a reação deles: ‘Quem pode ouvi-la?’ Eles dizem isso para se desculpar. Na verdade, porque se entregaram a ele, tiveram que ouvi-lo; mas porque não lhes ensinou coisas que lhes agradassem, quiseram criar uma oportunidade para partir: ‘O tolo não receberá as palavras de prudência, a menos que lhe digas aquelas que seguem a inclinação do seu coração’, Pr 18, 2” (Tomás de Aquino. Comentário ao Evangelho de João, c. 6. Disponível em: http://docteurangelique.free.fr/bibliotheque/ecriture/jean.htm consulta em 20/08/24, tradução do autor).

Jesus percebe que seus discípulos não recebem bem suas palavras, que provocam divisão entre eles: “Jesus denuncia o escândalo, porque os discípulos disseram ‘esta palavra é dura’ em voz baixa, para não serem ouvidos por ele, que sabia, pelo poder da sua divindade, o que diziam: ‘Jesus, sabendo que seus discípulos estavam murmurando’, Jo 6, 61. Ele sabe o que há no homem, Jo 2, 25, pois Deus sonda os corações e os rins, Sl 7, 10. Por isso Jesus perguntou ‘isto vos escandaliza?’, como se advertisse: não vos deveis escandalizar com isso”.

Tomás segue um caminho de interpretação bíblica em que o sentido literal é alternado com outro sentido, o espiritual. Contudo, o próprio sentido literal nem sempre é bem entendido, o que dificulta a compreensão do espiritual: “Mas como os médicos devem evitar escândalo a quem os ouvem, por que o Senhor lhes propõe verdades de fé tais que escandalizam e afastam os discípulos? Respondo dizendo que a necessidade da doutrina exigia que o Senhor lhes propusesse tais coisas. Na verdade, eles insistiram fortemente com ele para que lhes fornecesse alimento corporal, quando sua missão era abrir-lhes o desejo de alimento espiritual. Por isso, era necessário que ele lhes oferecesse ensinamentos sobre o alimento espiritual. Seu escândalo, contudo, não foi causado por uma falha no ensinamento de Cristo, mas pela sua incredulidade deles. Se, de fato, estando sujeitos à carne, não compreendessem as palavras do Senhor, poderiam interrogá-lo como fizeram os Apóstolos noutros lugares. Foi propositalmente, segundo Agostinho, que o Senhor o permitiu, para dar aos que ensinam bem um motivo de paciência e de consolação diante dos detratores das suas palavras, pois até os discípulos ousaram denegrir as palavras de Cristo”.

Para quem crê no Filho, não pode haver escândalo em sua mensagem. Sendo assim, Jesus questiona seus discípulos acerca da fé que nele tenham: “‘E quando virdes o Filho do Homem subindo para onde estava antes?’ Jo, 6, 62. A ocasião do escândalo foi terem ouvido o Senhor atribuir a si o que é de Deus. Então, por considerá-lo filho de José, ficaram escandalizados com suas palavras. Para evitar esta ocasião de escândalo, o Senhor mostra-lhes mais abertamente sua divindade. Ele diz: ‘Estais preocupados com o que eu disse sobre mim mesmo: ‘E quando virdes o Filho do Homem subindo para onde estava antes?’ Jo 6, 62, como se dissesse: podereis negar que desci do céu e que sou eu quem dá a vida eterna? ‘Vereis coisas maiores do que estas’ Jo 1, 50. Aqui também, ele anuncia algo maior sobre ele, dizendo: ‘E quando virdes o Filho do Homem subindo para onde estava antes?’ Jo, 6, 62. E, realmente, ele subiu ao céu à vista de seus discípulos, conforme Atos 1, 9; se ele, então, subiu aonde estava antes, é porque estava no céu antes: Ninguém subiu ao céu, exceto aquele que desceu do céu, Jo 3, 13”.

Às vezes, escandalizamo-nos por falta de entendimento. Por isso, Tomás recorre à interpretação de Agostinho, para mostrar que é preciso estar sempre em constante intimidade com a Palavra de Deus, e com seu Espírito, e assim alcancemos seus mistérios: “Mas estejamos atentos: mesmo que em Cristo a pessoa do Filho de Deus e do Filho do homem seja a mesma, a natureza é, todavia, diferente. É por isso que algo lhe convém por causa da humanidade – ascender – o que não lhe convém por causa da divindade, segundo a qual não há lugar ao qual ele possa ascender, uma vez que ele está eternamente no cume mais elevado de todas as coisas. Mas de acordo com a natureza humana cabe a ele ascender para onde estava antes – para o céu onde ele não estava de acordo com esta natureza. (…). Contudo, segundo Agostinho, estas palavras são ditas por outra razão. Ele diz, de fato, que eles ficaram escandalizados porque o Senhor havia dito que lhes daria a sua carne para comer: diante dessa possibilidade, e devido a seu entendimento carnal, tomaram isso no sentido literal, como carne de animal, por isso ficaram escandalizados”.

Todo mistério de Cristo, especialmente os sacramentos, nos é transmitido pelo Espírito Santo, tudo é obra do Espírito: “‘O Espírito é que dá vida, a carne não adianta nada. As palavras que vos falei são espírito e vida’, Jo 6, 63. Aqui ele descarta a ocasião de escândalo proveniente das palavras ditas. De acordo com Crisóstomo, ele distingue em primeiro lugar dois significados nestas palavras, pois as palavras de Cristo podem ser entendidas em dois sentidos: segundo o sentido espiritual e segundo o sentido carnal. E é por isso que ele diz: é o espírito que vive, isto é, se entenderdes segundo o espírito as palavras que disse, ou seja, se compreenderdes o sentido espiritual, elas vos revigorarão. A carne não serve para nada, ou seja, se as entendeis segundo o sentido carnal, elas não vos servem de nada; pelo contrário, prejudicam-vos porque, como diz a epístola aos Romanos: ‘Se viverdes segundo a carne, morrereis’, Rm 8, 13. E as palavras do Senhor a respeito de sua carne dada como alimento são, pois, entendidas segundo o sentido carnal, são tomadas em sua consonância externa e de acordo com a natureza da carne. E foi assim que eles as entenderam, como dissemos. Mas o Senhor disse que se entregaria a eles como alimento espiritual, não porque no sacramento do altar não esteja a verdadeira carne de Cristo, mas porque dela nos nutrimos de forma espiritual e divina. Portanto, o significado adequado destas palavras não é carnal, mas espiritual”.

Para nós, os mistérios de Cristo são fonte de vida, por isso buscamos a comunhão com ele: “Por isso acrescenta: as palavras que vos falei a respeito da minha carne dada como alimento são espírito e vida, isto é, têm um significado espiritual, e assim entendidas dão vida. Não há nada de surpreendente no fato de terem um significado espiritual, pois são do Espírito Santo. É o Espírito quem fala nos mistérios, 1Cor 14, 2. E os mistérios de Cristo dão vida: ‘Jamais esquecerei vossos preceitos, porque é por meio deles que me fazeis viver Sl 118, 93”.

Este profundo comentário de Tomás de Aquino à passagem de João 6, 60-63 ensina-nos que para entendermos os mistérios, isto é, a vida de Cristo, que ele transmite aos cristãos de sua Igreja, precisamos de estar unidos a ele pelo Espírito Santo. Este Espírito faz-nos compreender os mistérios de Cristo em seu sentido espiritual. Este é o grande alimento para os homens que Cristo nos deixou, sacramentado na Eucaristia e que se estende por toda liturgia celebrativa de seus mistérios.

 

Carlos Frederico 

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