Um leigo no Concílio

Há pouco celebramos com toda a Igreja os 60 anos da abertura do Concílio Vaticano II, aberto em 11 de outubro de 1962 pelo Papa São João XXIII. Evento que marca de forma definitiva a história da Igreja, seja pela proporção, seja pelas consequências, o Concílio provocou, desde que o Papa anunciou a intenção de convocá-lo em 1959, profundos debates acerca da presença da Igreja no mundo moderno que se desenhava na segunda metade do séc. XX. 

No Brasil, a notícia de um novo Concílio causou logo diversas impressões no episcopado e no clero em geral, bem como nos fiéis. Dentre os leigos, destaca-se uma importante parcela de escritores, artistas e intelectuais presentes na vida pública e que foram fundamentais em suas manifestações na imprensa para se compreender as diversas linhas de pensamento que pululavam na Igreja brasileira de 60 anos atrás. 

Entre esses intelectuais que eram voz da Igreja na sociedade brasileira estava Alceu Amoroso Lima, talvez o mais célebre. Crítico literário de presença constante nos jornais com seu famoso pseudônimo Tristão de Athayde, membro da Academia Brasileira de Letras e presidente do Centro Dom Vital, a figura de Alceu está intimamente ligada ao movimento de formação de um laicato atuante e presente que se inicia sob os auspícios do Cardeal Leme na década de 1920. Chamado pelo governo brasileiro a compor a comitiva que representaria o governo brasileiro na abertura do Concílio, as impressões que Dr. Alceu deixa para nós daqueles dias de renovação na Igreja são preciosas. 

As primeiras referências de Alceu Amoroso Lima ao Concílio são já do dia seguinte ao anúncio feito por João XXIII da intenção de convocar a reunião do episcopado universal. Em carta de 26 de janeiro de 1959 a sua filha, a beneditina Madre Maria Teresa, Dr. Alceu comenta: “A notícia do dia é, naturalmente, o anúncio ontem feito em Roma, de um novo Concílio Ecumênico, o primeiro depois do Concílio Vaticano de 1869/70, que foi interrompido por causa da Guerra Franco-Prussiana e nunca mais reaberto. É, de certo modo, uma continuação daquele, já que o outro foi interrompido e não encerrado.” Como podemos perceber, a visão que se tinha ainda era de que o futuro Concílio seria uma continuação do Concílio Vaticano I convocado por Pio IX e que se encerrara de forma abrupta dados os caminhos tomados pelos conflitos na Europa do final do séc. XIX. Porém, com os pronunciamentos subsequentes e toda a preparação para o Vaticano II, logo percebe-se que não será este uma continuação do anterior, mas um evento verdadeiramente novo e com características e consequências muito próprias. 

Nessa mesma carta, expressando sua experiência com a Ação Católica e o movimento leigo do Brasil da primeira metade do séc. XX, Alceu apresenta o que espera do próximo Concílio da Igreja: “O que nos deve inspirar – em coisas altas e grandes como esta de um Concílio Ecumênico que será o 21º na História – é apenas o amor da verdade e nunca o temor de ver nossas posições confirmadas ou rebatidas. Temos de crer que em assembleias como esta, em que se vão reunir mais de 1.800 bispos de todo o mundo católico, só a verdade prevalecerá.” Também não deixa de destacar a coragem pessoal do Papa João XXIII em se lançar nesse empreendimento, mostrando que, como se esperava na época, seu pontificado não seria simplesmente de transição, mas deixaria sua marca na história: “Eis aí o que me inspira essa grande notícia do novo Concílio. Está se vendo que o nosso bom Joazinho, que nós julgávamos apenas um pique, está começando a botar as manguinhas de fora e está longe de querer ser apenas um parêntese.”

Tão logo recebe essa notícia que vai sacudir o orbe católico, Dr. Alceu logo expressa publicamente na imprensa suas contribuições e pensamentos. É interessante olharmos hoje para um artigo publicado por ele em 31 de dezembro de 1961 no jornal Diário de Notícias, às portas, portanto, da abertura do Vaticano II, onde sua visão lúcida nos dá aquilo que ele entende como as três grandes tarefas do futuro Concílio. Surpreende-nos o quanto ele já pontua temas que serão de fato os grandes temas conciliares: “O que vai procurar, antes de tudo, o Concílio”, diz Alceu, “não é uma conciliação mas um rejuvenescimento da Igreja. Trata-se de apresentá-la em seus traços originais e essenciais, como o próprio Cristo presente em todos os momentos da História.” Ele entende que a primeira tarefa do Concílio é eminentemente interna, o que ele chamará de um exame da Igreja sobre si mesma: “Desembaraçar e aliviar a Igreja dessas excrescências e deformações, como se faz para restituir um edifício histórico à sua fisionomia primitiva e autêntica – eis a primeira tarefa do Concílio (…). Marcar ou remarcar as quatro notas típicas da perene juventude da Igreja – a unidade, a santidade, a catolicidade e a apostolicidade – eis a primeira tarefa do próximo Concílio. Tarefa, portanto, eminentemente interna, de vida interior, de exame de consciência.”

A segunda tarefa é ao mesmo tempo interna e externa. Trata-se do ecumenismo, trata-se de chamar à consciência a necessidade reunir os irmãos dispersos pelos diversos fatores históricos que levara à divisão entre os cristãos: “A segunda tarefa do Concílio se volta naturalmente para a ‘missão dos cristãos’. (…) Não é de crer que o Concílio possa, nem de longe, aplainar as tremendas dificuldades de ordem teológica, social e até temperamental, que ao longo dos séculos vem afetando a unidade da ‘túnica inconsútil’ do Cristo. Nem por isso deixa o Concílio de exercer uma ação catalítica da maior importância, ao menos para promover o espírito de convivência entre católicos, protestantes e ortodoxos, procurando acentuar o que os une e não o que os separa.”

Por fim, a terceira dimensão do Concílio é externa. Trata-se da sua relação com o mundo moderno que avança a cada dia por caminhos novos na história universal: A terceira dimensão do futuro Concílio é a que visa a própria civilização moderna. Aí também a dimensão é universal. A Igreja Católica, pelo Concílio, deseja entrar em si, mas para melhor sair de e atuar no mundo.” Nesse artigo está condensado um verdadeiro profetismo de Alceu Amoroso Lima. As três “tarefas conciliares” por ele pontuadas simplesmente adiantam três grandes documento conciliares: a Igreja que olha para si na Lumem gentium, para os cristãos divididos na Unitatis redintegratio e para o mundo na Gaudium et spes

Em primeiro de agosto de 1962 Alceu comenta em outra carta a sua filha o convite que lhe foi feito pelo ministro das relações exteriores, Afonso Arinos, para compor a comitiva que representaria o Brasil na abertura do Concílio: “No momento o que quero é falar de uma novidade. Parece que iremos… A Roma. Sim, senhora! (…) O caso é que o Afonsinho (Ministro do Exterior) me convidou ontem para integrar, com ele próprio e o embaixador do Vaticano, a comissão de três que deve representar o Brasil na abertura do Concílio, em 8 ou 10 de outubro. Diz ele que o núncio é que fez o convite (…).” A indicação de Dr. Alceu por parte do Núncio Apostólico destaca sua importância enquanto liderança do laicato nacional. Chegado a Roma, Dr. Alceu também nos transmite em suas memórias a recepção dos bispos brasileiros em Roma, no dia 10 de outubro de 1962: “Hoje fomos receber os 130 bispos que vieram no tal avião! Foi uma chegada emocionante e a rádio Vaticano gravou um discurso do Arinos e umas palavrinhas minhas, logo depois da chegada dos Bispos. Fui o primeiro a beijar o anel de D. Augusto que com seus 84 anos desceu sereno do avião, como se nada fosse! Foi D. Delgado que celebrou a missa a 10.000 metros de altitude. Disse que a viagem foi ótima. Falei com D. Hélder, D. Távora, D. Avelar Brandão, D. Delgado, D. Newton, D. Jorge Marcos e outros. O núncio me abraçou efusivamente e me chamou de ‘Bispo sem ordens’…”. 

Enfim no dia 11 de outubro de 1962 São João XXIII adentrava a basílica de São Pedro repleta de bispos, prelados, superiores de ordens religiosas, delegações nacionais e jornalistas para abrir o 21º Concílio da história da cristandade. No dia seguinte, em carta a sua filha monja, Dr. Alceu deixava transparecer todo seu maravilhamento com aquele fato histórico testemunhado por seus olhos: “Ainda estou (…) com os olhos cheios, os ouvidos tinindo e a cabeça tonta de todo o esplendor do que vimos e ouvimos ontem. Antes de tudo pelas palavras do Papa (…) que corresponderam tão bem ao que eu queria, esperava e temia que não fosse, que penso até exagerar e sobretudo individualizar egocentricamente o que ele disse, especialmente as passagens em que falava do novo espírito da Igreja, que não era de anátemas e condenações, mas de amor, de fraternidade, união na verdade, em suma tudo aquilo que venho pregando há tanto tempo em torno do espírito do universalismo, equilíbrio, paternidade, paz, amor, etc. (…) Estava e estávamos vivendo um momento histórico naquela basílica, onde agora se celebrava o maior Concílio da História!”

Dali até o fechamento do Concílio por São Paulo VI em 1965, Alceu brindará a imprensa brasileira com seus artigos a comentar a grande obra do Concílio Vaticano II. Suas contribuições para a reflexão acerca da aplicação prática das disposições conciliares terão grande influência, dada sua posição de destaque nacional. Retornar às suas memórias pessoais sobre aquele momento fundamental na história da Igreja contemporânea nos ajuda a ter um olhar mais acurado sobre os fatos, percebendo os anseios da Igreja e a recepção do Concílio, ajudando-nos a aprofundar mais ainda nesse profundo oceano que é a teologia emanada do Vaticano II. 

 

Eduardo Douglas Santana Silva, seminarista da Configuração II

Foto: Beozzo. Padres conciliares brasileiros no Vaticano II, 2001.

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